Arquivos da Terra: Antropoceno e horror de periferia
Em que se discute como três autoras argentinas contemporâneas reconfiguram certo horror para dar conta da experiência latino-americana do ponto de vista do Antropoceno.
1.
Distância de Resgate, livro publicado por Samanta Schweblin em 2014, tem uma estrutura narrativa bastante reconhecível para histórias de terror. Uma mãe e uma filha, moradoras da capital, fazem uma viagem ao interior rural da Argentina. Lá, passam a se deparar com eventos, lugares e pessoas esquisitas, que gradualmente vão criando uma atmosfera de medo e ansiedade. Em determinado momento, essa atmosfera se concretiza em uma ameaça real, que coloca em risco a vida de ambas.
Esse tropo do horror, que consiste em grupo de pessoas se afastando da civilização e se deparando com os horrores do interior, é bastante. Eu gosto de pensar nessa estrutura como um “horror de periferia”, o medo do que está do lado de fora, longe daqui, para além dos muros confortáveis da civilização. Essa periferia pode ser pensada em dois sentidos, como uma periferia rural, dominada por uma natureza selvagem, e também por uma periferia social, caracterizada por modos de vida “atrasados”.
Se pensamos pelo lado natural, entendemos o medo do que está na periferia como o medo de um tipo de natureza descontrolada, selvagem, ameaçadora. A cidade, o centro urbano, se constitui como uma espécie de camada protetora contra o que está “lá fora”. Lá fora, entende-se, aquilo que ainda não foi domesticado, não foi controlado pelo civilizado, uma outridade quase absoluta, desconhecida. Se afastar demais do centro, sair da cidade e ir para o campo, parece mimetizar esse medo de se afastar demais de nossa casa, de se perder numa floresta, ficar suscetível às intempéries violentas do ameaçador mundo natural, estar fragilizado aos ataques dos habitantes hostis que lá vivem. Nas narrativas de horror, muitas vezes tais habitantes podem ser propriamente os monstros, essas entidades desconhecidas ainda não mapeadas e domesticadas, que aguardam para nos fazer de presas. A modernidade, com seu impulso ideológico de compreender a natureza como aquilo que deve ser necessariamente dominado e controlado, transformar o natural em cultural, abre espaço para esse tipo de imaginação horrorífica de medo daquilo que é natural, uma espécie de ecofobia. Todo ser que não passou pelo crivo da cultura é uma ameaça, nos causa medo. É a nossa alteridade por definição, o não-humano desconhecido e, por isso mesmo, ameaçador. É possível pensar em incontáveis exemplos desse modo narrativo, em geral tomado sob o nome de eco-horror.
Pelo lado social, dá para ver também um tipo de horror de periferia. Uma viagem ao interior, por exemplo, pode nos colocar em contato com formas de existência distintas do modo de vida moderno, urbano, secular. Longe das cidades, ainda encontramos vestígios de um mundo “antigo”, ainda dominado por superstições, crenças em deuses vingativos, cultos sacrificiais, feiticeiros, bruxas, fantasmas. Parece que nas periferias o passado ainda persiste, um passado que supostamente conseguimos superar e erradicar através da modernização, no centro que efetivamente desencantamos. Tudo aquilo que não é moderno, que não corresponde com um modo de vida cosmopolita e globalizado, é ameaçador. A magia, os cultos, as entidades sobrenaturais são verdadeiras ameaças ao nosso modo de vida, algo que nos causa um horror profundo. Há um eco aqui das oposições binárias entre os cidadãos, que habitam dentro dos limites da cidade ou do império, e os bárbaros, que vivem no exterior. Cultivados contra os brutos, cristãos contra pagãos.
É claro que há uma relação com a natureza aqui também: aqueles que ainda mantêm tradições de relação com cultos telúricos, de conexão com a Terra, parecem produzir um medo nos modernos de recair nas profundezas do encantado. Essa oposição entre moderno e arcaico, entre cultivo e selvageria, entre centro e periferia, também espelha esse horror da alteridade, o medo do outro. Não admira portanto a relação histórica estabelecida entre essa dimensão terrestre e o feminino. Há, na constituição da ordem patriarcal, uma necessária diminuição ontológica da Terra e do feminino como um par indissociável, expresso de maneira bastante evidente na caça às bruxas, por exemplo. Há uma relação quase indissociável entre medo da alteridade, do encantado, do arcaico e do sobrenatural na criação dessa periferia não-moderna, objeto de infindáveis narrativas de horror. Talvez sua mais bem acabada forma, em termos de gênero narrativo, é o chamado horror folk.
Em ambos os casos do terror de periferia, a gente pode ver como é um medo produzido como sustentação da colonização moderna. A constituição do mundo natural como algo que precisa ser dominado, como se precisássemos nos emancipar das vicissitudes violentas da natureza, é uma ideia fundamentalmente colonial e moderna. Trata-se de uma espécie de espacialização, nas coordenadas centro/periferia, do imperativo da emancipação do sujeito moderno em termos da natureza. A própria definição iluminista da categoria do humano se baseia nessa necessidade da sublimação daquilo que em nós é natural: razão contra instinto, cultivo contra selvageria, nós contra eles. “Eles”, estão sempre do lado de fora dos muros, nas periferias, e nos definimos sempre na relação de distinção com o outro. Assim, processo violento de erradicação da alteridade em nome de uma homogeneidade “humana”, acaba por constituir toda diferença como uma forma de perigo. Aqui o não-humano é o agente da produção de medo, seja em sua dimensão de seres naturais, seja em sua dimensão de povos ou modos de vida que não correspondem a uma ideia homogênea de humanidade – europeia, diga-se. Não precisamos ir muito longe para ver como isso se aplica de maneira didática nas narrativas dos grandes fundadores do horror contemporâneo.
2.
Distância de resgate faz importantes torções nesses modos narrativos. Por se tratar de um livro latino-americano, de uma autora que compreende as dinâmicas coloniais, ele já parte de uma postura que coloca em xeque a própria ideia do horror de periferia. Em primeiro lugar, pelo fato de que o ambiente inicial da narrativa, de onde partimos antes do deslocamento, já ser um tipo de periferia. Partimos da “civilização”, mas uma civilização periférica, distante de um centro moderno. Em segundo lugar, pelo fato de que a natureza que serve como o monstro da narrativa, a fonte da ameaça, não é uma natureza descontrolada, incivilizada, selvagem. Pelo contrário, o ambiente hostil encontrado pela mãe e filha é a natureza fundamentalmente domesticada, industrializada, politizada: as gigantescas plantações de soja no pampa argentino.
Na trama do livro, Amanda e sua filha Nina vão para uma cidade no interior da Argentina passar as férias de verão. Lá, Amanda conhece Carla, uma moradora local com quem desenvolve uma proximidade, e seu esquisito filho David. Em determinado momento, Carla revela a Amanda que David se comporta dessa forma pois contraiu uma doença misteriosa, um tipo de envenenamento, e sua morte era iminente. Nenhum dos médicos da região tinha qualquer ideia de como salvar sua vida, então Carla precisou dos conhecimentos da bruxa do povoado. A bruxa realiza um ritual de transmigração de almas em David, afirmando que a alma envenenada seria substituída por uma saudável, capaz de vencer a infecção. Desde então, David se comporta como uma criança estranha: avoada, ausente, com uma peculiar relação com animais. Quando a tragédia do envenenamento fatalmente acomete Amanda e Nina, o mesmo ritual é operado em sua filha, como medida desesperada para tentar salvá-la.
O breve romance de Schweblin funciona também como uma história de detetives. Essa breve exposição que fiz dos eventos da história são reconstruídos a partir de um diálogo, que ocupa todo o livro, entre David e uma moribunda Amanda, que tentam em conjunto descobrir o momento exato em que a doença foi contraída. O tempo todo se constrói uma tensão para descobrir, de fato, o que pode ser responsável por causar um envenenamento tão avassalador. Não sabemos por que é David quem faz as perguntas, nem os motivos precisos pelos quais ele instiga Amanda a lhe contar exatamente o que se passou.
Ao fim da narrativa febril de investigação, parece bastante claro que o motivo das doenças que vitimam aquele povoado têm sua origem nas extensas plantações de soja que assolam toda a paisagem. Seguindo a linha que venho defendendo nos últimos textos, Schweblin opera uma espécie de desnaturalização do real através do sobrenatural, tomando um fato concreto da vida argentina e torcendo-o sob as formas narrativas do horror. Aqui, ela trata especificamente da legalização de um tipo muito específico de agricultura, o plantio direto de soja.
A partir dos anos 90, a Argentina incentivou esse tipo de cultivo, que é baseado num trato do solo a partir de uso extensivo de agrotóxicos e o plantio de sementes de soja geneticamente modificadas, imunes aos efeitos nocivos do veneno. A Monsanto, multinacional responsável por criar e patentear as sementes transgênicas de soja, também é a fornecedora do principal agrotóxico para o seu cultivo, o famigerado glifosato. Por mais que a soja transgênica seja imune aos efeitos do glifosato, todo o seu entorno não o é. Ele é um verdadeiro agente laranja ambiental, capaz de aniquilar desde a ecologia de plantas e animais do solo, passando pelos insetos e demais predadores da soja, até mesmo seus cultivadores, agricultores empobrecidos de regiões periféricas do mundo. O ambiente no qual o plantio direto de soja é implementado se torna automaticamente devastado: só soja pode crescer e se desenvolver ali, nada mais.
A própria trama de uma doença desconhecida é diretamente relacionada a atuação da Monsanto. A transformação desses povoados em modelos de plantio passa por uma propaganda de modernização e afluência econômica que precisa invisibilizar os efeitos nefastos que os agrotóxicos produzem nos ambientes. As imagens de grandes máquinas super desenvolvidas e trabalhadores colhendo mares de soja com equipamento de ponta faz parte de um processo que esconde uma realidade absolutamente violenta por debaixo desse verniz. Pois tais povoados são forçosamente desassistidos do ponto de vista da saúde pública: não há hospitais, não há médicos, não há pesquisa científica que seja capaz de atestar que o glifosato é um vetor de adoecimento generalizado e da aniquilação de todos que ali vivem – exceto a soja. Todas as doenças que acometem tais áreas rurais são forçosamente desconhecidas, seu desconhecimento é produzido, seus efeitos são invisibilizados, para que o plantio siga ocorrendo sem maiores interrupções.
3.
A situação descrita em Distância de Resgate em muito se assemelha àquilo que o crítico argentino Horácio Machado Aráoz denomina de exploração neocolonial na América Latina. Ainda que o autor esteja discutindo a prática da mineração, sua descrição de uma dupla-face discursiva em termos de exploração do ambiente é muito adequada para locais como o de Distância de Resgate. Por um lado, na face mais visível, temos um discurso de progresso e de bonança econômica, da exploração consciente e tecnológica que, finalmente, irá trazer a América Latina ao século XXI, graças ao avanço científico nas práticas de plantio. Mas há uma contraparte a esse discurso do progresso, aquilo que Aráoz denomina uma fenomenologia do horror:
Como contraface exata desse cenário primeiro-mundista, está a realidade que se apresenta como fenomenologia do horror. É a que deixa marcas indeléveis nos corpos e territórios afetados pela violência produtiva da ordem colonial. Novas formas de violência ativam os velhos fantasmas do terror originário e cíclico, remetendo à dor histórica e à injustiça imemorial.
Há, no caso do pampa argentino retratado por Schweblin, um exemplo dessa condição. Por um lado, o discurso de modernização, visível e vendável. Por outro lado, a experiência desse horror que é apenas sentida pelos habitantes dessa localidade, já que os esforços coletivos são no sentido de tornar esse horror invisível. A tentativa de Schweblin aqui é de criar uma espécie de gramática para o invisível, tornar inteligível esse ambiente rural ameaçador. Mas diferente do caso de uma natureza livre, selvagem e desconhecida, que aterroriza os modernos da Monsanto, as plantações de soja no interior da Argentina são efeito direto da ação humana: uma soja transgênica, produzida em laboratórios de ponta com pesquisa científica aplicada, compostos químicos que devastam seu entorno, um campo adoecido que só faz adoecer. O horror que Schweblin produz é propriamente o horror da intervenção nociva dos humanos por sobre um ambiente, uma intervenção que é baseada na aniquilação do maior número de existentes possível para que apenas um seja capaz de vicejar.
A lógica do plantio direto de soja resguarda muitas semelhanças com o processo de colonização, tal como foram as plantations nos primeiros séculos da colonização, não por acaso facilmente caracterizável como neocolonial, como o faz Aráoz. A imposição de apenas um modo de existência, não importa o custo, sobre todos os outros, em qualquer lugar. A homogeneização de um tipo de vida, uma monocultura, em detrimento da diversidade. O impacto violento dessa padronização sobre as existências locais.
Enquanto que o ecohorror e o horror folk eram baseados em um medo que fundamentava a ideologia colonial, o livro de Schweblin trata de um horror produzido como efeito da experiência colonial. Não é mais a natureza selvagem que produz medo, mas a natureza colonizada com seus efeitos devastadores. Não são mais as populações não-modernas, com seus modos de vida ancestrais que nos ameaçam, mas a tomada de consciência que tais populações somos nós.
As violências que cometemos contra a terra se voltam contra nós. Em algum nível, poderíamos dizer que essa é uma frase que resume o projeto de Schweblin. A destruição causada pelo uso de agrotóxicos tem um custo econômico baixo para a produção de soja, mas a violência que sofremos por optar fazê-lo são de um custo muito alto. Mas não quero aqui cair em uma retórica de que há uma espécie de vingança da terra contra os humanos malvados. Apenas destacar que a terra e sua habitabilidade é resultado de um conjunto de espécies e suas interações, e que violentar e aniquilar uma parte substancial dessas espécies coloca em risco as condições que tornam possível a nossa permanência aqui. Quando violentamos a Terra, estamos necessariamente produzindo uma violência contra nós mesmos. Nas palavras de Aráoz, mais uma vez, “As condições dos corpos refletem, assim, as agressões aos territórios”.
Schwbelin deixa claro que há uma transversal que liga uma violência ambiental, uma violência social, e uma violência individual, subjetiva, corporal. O corpo da Terra, com seu solo infectado dos mais violentos venenos, é também o corpo da cidade abandonada e sem perspectiva, assim como o corpo doente de Nina e Amanda, que lutam para sobreviver.
Mas quando digo “nós”, é preciso deixar uma coisa clara. Quem está sofrendo os efeitos dessa violência não são os donos da Monsanto. São as populações desassistidas, os periféricos não-modernos, os latino-americanos trabalhadores que ocupam, na lógica monsantiana, uma posição semelhante aos insetos que precisam ser controlados nas plantações: fazem parte da equação. Tal como na lógica colonial, é aqui, na periferia, onde as violências são experimentadas e aperfeiçoadas.
A escolha do pampa argentino como paisagem para o romance de Schweblin tem essa conexão com um documental, com um processo histórico que faz com que a Monsanto sinta-se livre para experimentar suas formas violentas de cultivo sem ser incomodada. E é precisamente aí, nessa periferia rural mas também global que aparecem de maneira mais clara os efeitos violentos da intervenção capitalista sobre a Terra. É nas periferias em que vemos, com mais clareza, as já inescapáveis transformações pelas quais nosso planeta sofre e sofrerá com cada vez mais intensidade. Como disseram Eduardo Viveiros de Castro e Deborah Danowski, a flecha do tempo se inverteu. Antes, o futuro chegava mais cedo nos centros, o progresso da civilização: cultura, tecnologia, bem-estar, dinheiro. Agora, os primeiros a experimentarem o futuro são aqueles que vivem nas periferias: catástrofe, doença, aniquilação.
Nesse sentido, quando falo em horror de periferia para caracterizar o trabalho de Schweblin, o faço tendo em vista uma torção em relação ao modo como o abordei no início do texto. No ecohorror e no horror folk clássicos, é a periferia o objeto que produz o medo, temos medo da periferia. Já em Schweblin vemos um tipo de horror próprio à periferia, um horror que é singular à experiência daqueles que vivem afastados dos centros civilizatórios, que sofreram e sofrem os efeitos da dinâmica mesma que cria um centro e uma periferia. Essa reconfiguração do horror como também nosso, ou a criação de uma perspectiva nova e singular que produz novas narrativas de horror, é transversal à literatura latino-americana contemporânea.
4.
A dinâmica do horror presente em Distância de Resgate pode ser entendida como uma possível figuração poética ou narrativa do Antropoceno. Há algo de específico no modo que Schweblin reconfigura o ecohorror dentro das dinâmicas dessa nova era geológica marcada pelo impacto dos humanos no planeta. Se havia um entendimento que uma natureza selvagem produzia medo, agora é o ambiente perturbado pela presença humana que causa o horror. É claro que sempre soubemos que havia um impacto ecológico ou ambiental nas formas pelas quais os humanos violentam ecossistemas específicos. Mas o que caracteriza o Antropoceno é a sua dimensão de escala global: não mais os impactos ambientais são limitados aos locais da intervenção, como uma plantação de soja que envenena o solo em determinado lugar, mas constituem uma transformação generalizada das condições de habitabilidade em todo o planeta. As regras e leis “naturais” que regiam a Terra até agora se transformaram de maneira irreversível para todos. Claro que os efeitos dessas transformações afetam primeiro aqueles que estão em situação de maior vulnerabilidade, mas é fato de que a vida humana e não-humana na Terra será alterada de forma radical, se não erradicada em poucos anos.
A face mais visível do Antropoceno, por certo, é a violenta alteração das condições habituais de funcionamento do planeta, normalmente na forma das catástrofes. Grandes rompimentos de barragens, a acidificação dos oceanos, o aumento das temperaturas médias, extinções de espécies em larga escala. Entretanto, há uma face ainda mais insidiosa, e por isso mesmo menos visível, que diz respeito a construção desse novo planeta que habitamos. Um tipo de violência vagarosa, persistente, que parece não irromper de maneira notável do cotidiano. É uma construção lenta e cuidadosa de um planeta manufaturado. Longe de mim apregoar uma ideia de natureza pura e intocada. Mas trata-se da compreensão de que tal planeta manufaturado não é produzido em nosso benefício. Pelo contrário, e as plantações de soja no pampa argentino atestam isso, trata-se de um planeta que nos é hostil.
Schweblin tenta criar essa gramática narrativa para violências sutis. Como disse mais cedo, há um processo ativo de invisibilizar as violências por parte da Monsanto, por exemplo, onde são apenas as populações locais que conseguem experimentar a real dimensão do horror de sua atuação. Mas também, Schweblin cria em seu romance uma gramática narrativa para essa violência de transformação consistente do planeta. Em certo sentido, Schweblin faz quase uma literatura de antecipação. Ela constrói uma poética do horror própria às periferias, que sentem os efeitos da crise climática com mais intensidade e mais cedo, mas que, assim como é próprio ao Antropoceno, se tornarão fatalmente globais.
Em Distância de Resgate é quase como se adentrássemos em um mundo alienígena, dominado por organismos produzidos em laboratório que pouco se assemelham com o estado de coisas vigente até então. A soja transgênica, que mantêm poucas relações de similaridade com aquilo que conhecemos como “planta”, é um tipo de elemento de distúrbio que se funde com a paisagem do pampa de maneira muito sutil. Mas não se trata de uma catástrofe, um evento de grande magnitude. Trata-se de uma violência persistente em sua construção, porém sutil do ponto de vista temporal, que ao mesmo tempo em que é construída é também cuidadosamente invisibilizada. Ao mesmo tempo em que se violenta as populações e o ambiente em uma zona de devastação, também se ensaia a construção de um novo e outro mundo. Nesse sentido, a literatura de Schweblin se assemelha a uma ficção científica, que trata em algum nível de um mundo alienígena e que é também antecipatória, profética. Sem dúvidas, mantêm um parentesco visível com ficções científicas que tratam do conceito de Zona, tal como Piquenique da Estrada, dos irmãos Strugatski (e adaptado por Tarkóvski em Stalker) e também o romance Aniquilação, do estadunidense Jeff Vandermeer.
Por mais que pareça que ainda vivemos no mesmo espaço, que as coisas estão ainda seguindo sua ordem habitual, há algo de infamiliar zumbindo na paisagem. Há uma certa inquietação de que já não mais habitamos o nosso planeta, e que tal planeta nos é hostil. A paisagem da soja é assombrada por sua própria capacidade de antecipar um futuro, um futuro de ruína e devastação.
5.
Apesar das diversas torções que Samanta Schweblin opera em relação ao horror de periferia, ela ainda mantém algo importante de sua estrutura: a paisagem que serve de cenário para o seu romance é uma periferia rural. Já no caso de Mariana Enríquez, no conto Sob a água negra, a própria ideia de periferia é reconfigurada: toda a estrutura do ecohorror e do horror folk são transportados para o ambiente urbano, nas bordas de uma grande cidade do Sul Global. Essa compressão espacial, colocando a periferia como parte do centro, desfaz determinados parâmetros estabilizados que discuti na primeira seção desse texto, em especial a separação clara do que está “dentro” e do que está “fora”. A própria cidade, definição do centro civilizado, é habitada internamente por aquilo que se julgava como exterior. São colapsadas as divisões entre o que é natural e o que é cultural, o que é passado arcaico do que é presente moderno, do que é “nosso” em relação ao alheio. No conto de Mariana Enríquez tudo é simultâneo, tudo se coabita.
O conto se passa, bem, na periferia de Buenos Aires, em um bairro comum a toda grande cidade latino-americana, costurado pela desigualdade social. Acompanhamos uma promotora de justiça que investiga um caso de violência policial: o assassinato de dois jovens pelas forças do estado. O que intriga a promotora, pois esse tipo de caso é comum em Buenos Aires, é o fato de que ele é marcado por um tipo de crueldade extra. Os policiais, após torturarem os jovens, não apenas os mataram e descartaram seus corpos, como seria o comum, mas os jogaram ainda vivos no rio poluído que cruza o bairro para que se afoguem em meio ao lixo e o dejeto (cabe dizer: Mariana tomou esse caso de uma notícia de jornal, reafirmando a dimensão documental do horror latino-americano contemporâneo). Esse é o detalhe que a motiva a visitar o local, essa violência gratuita que parece destoar da crueldade habitual da polícia.
Quando chega ao bairro, que conhece relativamente bem, encontra uma paisagem esquisita. O que antes era movimentado, barulhento, cheio de atividade, parece estar em suspenso: há um silêncio e um vazio lúgubre, quase sufocante. Ela visita a igreja local, e lá encontra o padra da paróquia em um verdadeiro surto psicótico, balbuciando palavras incompreensíveis tal como um profeta apocalíptico. Seu discurso é de uma mente em dissolução, de alguém que testemunhou visões terríveis, insuportáveis para a racionalidade contemporânea. Em sua loucura, o padre comete suicídio em sua frente.
Ao sair da igreja, a promotora começa a escutar um batuque ao longe, com tambores soando num ritmo desconhecido. Dobrando uma esquina, ela se depara com a visão que talvez tenha enlouquecido o padre: uma procissão dos moradores do bairro, organizados em uma marcha ritual, entoando cânticos de louvor em uma língua desconhecida. Na frente da marcha, suspenso em um colchão puído, está um dos jovens assassinados, liderando esse culto a um deus desconhecido que foi acordado no fundo do leito do rio.
Os ecos intertextuais que Mariana estabelece ao longo do conto são evidentes. Trata-se de uma torção da obra de H.P. Lovecraft, talvez o grande expoente literário do pavor da alteridade. Em Lovecraft nos deparamos com a mais bem acabada poética do colonialismo, do racismo e da rejeição de qualquer tipo de diferença. Seus personagens, quando se deparam com os resquícios de um passado profundo, radicalmente ancestral, enlouquecem, são incapazes de manter qualquer tipo de relação com uma alteridade que se constitui nas bordas da racionalidade. O chamado horror cósmico, denominação da poética de Lovecraft, não é nada mais que a rejeição de qualquer mundo ou cosmo que não seja branco, racional, moderno. É Lovecraft quem funda no horror, ou pelo menos realiza de forma mais completa, o medo absoluto da outridade, expresso de maneiras distintas no ecohorror e no horror folk.
Mariana aqui se utiliza dos tropos lovecraftianos e da estrutura do horror folk para produzir uma síntese acerca das possibilidades do horror latino-americano. Ela dobra a aposta no sobrenatural, conjurando um deus ctônico que jaz no fundo de um rio destruído pela lógica centro/periferia. É para esse rio que são destinados todos os rejeitos do modo de vida urbano, servindo como via de escape para sustentar a cidade. São esses rejeitos, a destruição do rio, que alimentam e criam esse deus inominado, que passa a ser cultuado e louvado pela população local. O retorno das violências contra a Terra vem na forma de uma divindade ctônica, propriamente lovecraftiana, que se alimenta da poluição e da morte do rio. E assim como nas narrativas de horror folk, o terror se dá no momento em que uma pessoa civilizada, do centro, se depara com esse culto ancestral nas periferias. Entretanto, não se trata de um culto residual de um passado pré-moderno que ainda se insinua no presente, mas um deus que só existe como resultado da desigualdade urbana fruto da nossa forma de habitar.
A periferia aqui não é o local onde o progresso ainda não chegou, mas sim o efeito direto e invisibilizado das dinâmicas próprias da modernidade, de exclusão e marginalização de suas violências. O deus de Sob a água negra não é um deus antigo, e seu culto não é um resquício de um passado superado: trata-se de um deus do Antropoceno, criado como divindade através dos rituais e sacrifícios violentos da modernidade.
A torção interessante realizada por Mariana no conto, em relação a uma poética lovecraftiana, diz respeito ao fato de que o deus ctônico e seu culto não operam na narrativa necessariamente como vilões. É claro que há personagens que servem como operadores da rejeição da alteridade e do pavor desse culto, como o padre, mas se insinua no conto de Mariana uma troca de perspectiva. É plenamente possível, e até mesmo desejável, ver com simpatia os cultistas, tomar o lado da divindade ctônica que de certa nos defende das violências próprias da modernidade. Em certo sentido, trata-se de um levante cósmico das periferias contra as dinâmicas de violência estatal e ambiental, que organiza uma resistência das bordas contra o centro.
Pois há algo no conto de Mariana que transforma toda a dinâmica do horror folk e do ecohorror, que é precisamente a dinâmica que cria o deus e instaura o culto. A violência contra o rio, sua destruição, é um processo lento que se articula há décadas. É apenas a partir do assassinato dos jovens, em uma dinâmica propriamente sacrificial, que esse deus que vinha sendo cultivado lentamente finalmente se levanta.
Mais cedo usei a fórmula, para caracterizar o livro de Schweblin, de que as violências que promovemos contra a Terra se voltam a nós. No conto de Mariana essa lógica segue vigente, mas dá para introduzir uma fórmula complementar: as violências que promovemos contra nós mesmos também se refletem na Terra. Não apenas há a violência ambiental, mas é propriamente a violência estatal, na forma do sacrifício, que faz a Terra se rebelar na forma de um deus. Todo o processo de violência social, de desigualdade e exclusão, resulta na produção desse sacrifício, que não passa impune. A criação da divindade ctônica não é apenas resultado direto de violências ambientais, mas de violências contra outras pessoas.
Talvez essa seja uma das mais potentes lições de pensar o conceito de Antropoceno. Como disse Dipesh Chakrabarty, a história da Terra e a história humana estão agora fundidas. Não há como se pensar o nosso regime planetário atual ignorando a forma pela qual nós, humanos, criamos formas de habitar. E isso se expressa de maneira mais visível a partir dos regimes de violência e opressão. Não estaríamos numa condição de catástrofe climática se não fossem a escravidão, o capitalismo, o colonialismo. Formas de violência e opressão voltada contra humanos que o resultado, além do horror e das tragédias sofridos pelas populações submetidas a esse regime, é também a destruição das condições de habitabilidade do planeta. A Terra não se furta de refletir, de efetivamente registrar, as violências que cometemos historicamente. A intrusão de um deus telúrico lovecraftiano, carregado por uma murga ritual dos desvalidos, é uma potente imagem de resistência latino-americana contra as violências que nos acometem transversalmente: ambiental, social e subjetiva.
6.
Apesar de não parecer, à primeira vista, ser um livro propriamente ambiental, gostaria de comentar brevemente o livro Cometerra, de Dolores Reyes, à luz de ambas as fórmulas que abordei mais cedo: a violência contra a Terra se volta contra nós; as violências contra nós se refletem também na Terra.
No romance, uma garota da periferia de Buenos Aires descobre que possui um curioso poder. Ela é capaz de, ao comer um punhado de terra, testemunhar de forma quase mediúnica as violências que foram cometidas sobre aquele solo. Esse poder da Cometerra a torna uma espécie de bruxa investigadora, que aos poucos vai sendo descoberta pelos seus vizinhos, curiosos e policiais que a procuram para tentar descobrir o paradeiro de pessoas desaparecidas ou cuja morte é misteriosa.
Dolores Reyes aqui atualiza um tropo clássico do horror: a persistência de energias residuais que assombram locais onde uma violência foi cometida. Desde as casas assombradas, passando pelo dispositivo racista do cemitério indígena no cinema norte-americano, há um discurso que articula a figura do fantasma e da assombração como uma espécie de registro material de presenças do passado que retornam no presente. Inclusive, dá pra notar uma tentativa de tornar científico, ou racional, aparições fantasmáticas como uma propriedade midiática de certos materiais, capazes de gravar eventos do passado que alguns conseguem reproduzir no presente. É como se a própria Terra fosse capaz de registrar em si mesma um trauma intenso o suficiente.
A própria geologia, de certa forma, se constitui como uma disciplina construída sobre essa ideia de violências gravadas nas rochas. Tudo que sabemos sobre a história profunda da Terra teve sua origem em uma violência: grandes terremotos, variações brutais na composição química da atmosfera, transformações climáticas, grandes extinções. Esses eventos de magnitude gigantesca deixam sua marca, cujo papel dos geólogos é ler e interpretar, além de criar uma narrativa capaz de articular esses signos que apontam para a história violenta do nosso planeta. Tudo o que sabemos do passado da Terra é aquilo que foi violento o suficiente para deixar sua assinatura diretamente na superfície das pedras.
Em Cometerra essa disposição geológica da Terra atravessa a “grande divisão”, e demonstra como mesmo as violências humanas são grandes o suficiente para deixar suas marcas impressas diretamente no planeta. A Terra não é alheia ao trauma humano, como o próprio conceito de Antropoceno já deixa claro, e Cometerra é uma importante figuração nesse sentido. É engraçado, inclusive, como é precisamente essa noção tomada da geologia que Freud irá se inspirar para construir sua teoria do trauma. Em termos muito rápidos aqui, para Freud eventos suficientemente marcantes e de certa forma ininteligíveis e violentos, deixariam uma marca profunda na nossa psique, uma cicatriz escondida nas camadas mais profundas de nosso inconsciente. Assim como uma montanha, cujos estratos parecem ser produzidos de maneira sutil e contínua com o tempo, formando um bloco uniforme, nossos níveis psíquicos também esconderiam, sob uma forma aparentemente uniforme, camadas de traços das violências sofridas. É preciso um leitor especialista, um geólogo ou escavador das profundezas, capaz de identificar, nisso que parece algo natural, o registro de traumas violentos. Contar a história da formação de uma montanha por um geólogo, seria semelhante a escavar as profundezas do inconsciente.
Ainda que Freud se inspire na geologia, parece que é Cometerra que deixa de lado o trauma como metáfora geológica e o atualize como fato. Quando a personagem come a terra onde uma violência foi cometida e descobre que ali, naquela terra, há um registro do evento, Dolores Reyes cria uma imagem mais do que adequada para representar a verdadeira dimensão do Antropoceno: há uma transversal que conecta os traumas próprios da espécie humana com os traumas próprios da Terra. Ela atravessa a grande barreira que separa os fatos sociais dos fatos naturais, demonstra como o trauma humano é em certo sentido da mesma categoria dos traumas naturais, geológicos.
É interessante como Cometerra trabalha em um registro temporal do presente. Não se trata de escavar o tempo profundo da Terra, ou eventos que ocorreram em um passado recente ou indeterminado. Aqui, trata-se de investigar os traumas que estão acontecendo agora, que estão sendo produzidos a todo momento. E também não se trata de um local determinado, de uma casa ou cemitério indígena. Para a personagem, toda e qualquer terra da periferia carrega em si um traço marcado de uma violência cometida. Na periferia do mundo, na América Latina, toda a Terra é um grande cemitério.
Por isso também o ponto de vista do feminicídio, das violências operadas contra mulheres e populações excluídas. Parece que aqui no Terceiro Mundo não temos escolha que não habitar sobre os estratos de violência, seja do passado, seja do presente. Por mais que a modernidade diga de si mesma que vive sob os preceitos da racionalidade coletiva, nas periferias ainda escorre sangue. E não se trata de uma violência própria dos atrasados, superada nos centros. A violência que se registra na Terra aqui é diretamente efeito de uma suposta sublimação da violência nos centros. Para um latino-americano, não existe opção que não viver em uma Terra assombrada. É a própria Terra que não nos deixa esquecer que esse planeta que vivemos é o resultado de um regime de violências reiterado constantemente. No romance, estamos diante de cada uma das vítimas, conhecemos sua história, as marcas que seus assassinatos deixaram sobre a terra comida por Cometerra. Mas se pensarmos em todas as vítimas, todo o sangue derramado nas periferias do mundo, o capitalismo e as práticas de violência que o mantêm de pé, se constitui como um evento geológico tão traumático quanto uma Era Glacial, capaz de expressar sua existência na Terra por eras e eras. E ela jamais nos deixará esquecer.