Esse texto é o primeiro de uma série que pretendo publicar ao longo das próximas semanas. Trata-se da sistematização de algumas ideias acerca da literatura de horror latino-americana contemporânea, baseada em cursos realizados em 2022 pela APPH. Nesse primeiro texto, tento apresentar o tema e algumas características marcantes dessa literatura, numa espécie de chave de leitura para sua compreensão. Nos próximos textos, serão analisados mais pontualmente tanto temas quanto textos específicos.
1.
Muito se tem falado e discutido a respeito de um movimento singular na literatura contemporânea latino-americana centrado no gênero do horror. Embora os discursos acerca desses textos muitas vezes se apoiem em critérios jornalísticos e editoriais, o que julgo natural, é inegável que de fato estamos perante um conjunto de produções com alguma coesão coletiva, ainda que não se trate de algo como uma poética unificada ou de um movimento geracional discutido e planejado de antemão. Acredito que haja um conjunto de características transversais a diversos textos que valeria a pena investigar, não para suplantar as diferenças brutais entre eles, mas para tentar mapear algumas sensibilidades estéticas próprias de uma literatura contemporânea que, como disse, parece guardar algo de singular. Talvez essa transversal seja apenas o gênero literário, a escolha consciente de fazer uma literatura assumidamente de gênero, o horror, em oposição a uma ficção literária tradicional, realista, e isso seja um indício produtivo para pensarmos como se articula e o que produz uma certa literatura latino-americana contemporânea.
2.
Se pensarmos na literatura latino-americana do século XX, não parece nada surpreendente essa tendência de se afastar das técnicas do realismo tradicional. A literatura fantástica, como veremos, é peça fundamental na construção das literaturas latino-americanas pelo menos desde meados do século XX, se não desde o fim do XIX. Entretanto, não estamos falando aqui de literatura fantástica tout court, mas de um tipo específico dela, de uma ramificação sua, que é a literatura de horror. Em um texto provocativo, a escritora argentina Mariana Enriquez (talvez uma das maiores expoentes dessa geração, que será exaustivamente referenciada daqui em diante) afirma que não há uma tradição de literatura de horror na América Latina. Justamente essa falta de tradição, reconhecida contemporaneamente por ela e seus pares, traria uma espécie de liberdade para a constituição (ou invenção) de uma poética do horror propriamente contemporânea. Ela reconhece, claro, um conjunto de autores e autoras latino-americanos (e argentinos, em particular) que escreverem literatura de horror: Borges, Bioy, Ocampo, Lugones, Queiroga. Mas diz Mariana que todos eles faziam uma espécie de horror universal, não um horror latino-americano. É difícil precisar o que exatamente ela quer dizer com isso, mas o exemplo que usa é ilustrador. Diz que Borges, quando escrevia contos fantásticos, se utilizava de figuras propriamente europeias, como é o caso do Minotauro em A Casa de Asperion. Claro que há um gesto importante de apropriação e manipulação da mitologia europeia por um latino-americano, gesto esse nada banal, mas a conexão com o horror parece algo estrangeiro, distante. Não haveria aqui, na América Latina, figuras sobrenaturais capazes de criar uma conexão local com o gênero do horror?
Pois as figuras clássicas do horror – o vampiro, o fantasma, o monstro, a bruxa – são uma espécie de figuras “residuais” da tradição popular europeia que foi aos poucos se esvanecendo com o processo de modernização. O retorno de tais figuras na literatura europeia diria respeito a uma espécie de sublimação estética de personagens que até pouco tempo antes não tinham nada de imaginárias, eram reais. A literatura gótica, ou de horror, seria uma espécie de elaboração literária das ansiedades próprias do processo de modernização e secularização europeus. O ponto de Mariana é que, diferentemente da Europa, as figuras próprias da nossa tradição popular, que ocupariam uma posição estrutural semelhante, foram violentamente invisibilizadas. Não se tratou, na América Latina, de um pretenso processo de superação racional das tradições populares e mágicas, tal como os europeus justificam seu processo de modernização, mas sim de uma supressão violenta. Para Mariana, a colonização foi um processo de proibição de qualquer visão de mundo não condizente com o modo de vida europeu. Tudo que é próprio da América Latina, suas “superstições” e figuras mágicas não foram propriamente sublimados ao longo do tempo, mas sim violentamente apagados. Sendo assim, não seríamos capazes de escrever terror propriamente latino-americano, pois não teríamos nem a “matéria-prima” de onde retirar a inspiração para a sublimação estética. Nos sobram apenas os minotauros, os vampiros das florestas da Albânia e os fantasmas que rondam castelos medievais. Até o residual foi importado.
“Qual é então o meu horror?”, se pergunta Mariana Enriquez. O possessivo aqui diz respeito a autora Mariana, mas também expressa um nós mais amplo, um nós latino-americano. Pois não apenas não teríamos literariamente criado ainda uma elaboração literária das nossas tradições, e nem mesmo uma tradição literária de horror. Nossos referentes, diria Mariana, não são apenas arquétipos estrangeiros, mas também autores estrangeiros: Lovecraft, Shirley Jackson, Stephen King. A língua franca do horror não parece ser o espanhol, ou o português, mas o inglês. O que, de certa forma, promove também uma liberdade: o meu horror é o que for possível produzir, sem o peso da tradição. Mas essa liberdade, obviamente, vem com um preço: o preço da criação. Daí a forte pergunta de Mariana: afinal, qual o nosso horror? Suas respostas, essencialmente duas, abrem um caminho interessante a ser explorado daqui em diante. Elas serão evocadas em diferentes momentos do texto, mas desejo registrá-las já de saída.
A primeira resposta diz respeito ao que já vínhamos discutindo, acerca dessa importação de figuras. Mas não se trata apenas de substituir um vampiro por um deus asteca, um fantasma por uma entidade iorubá, uma bruxa por uma voadora. Tratar-se-ia, diz Mariana, de produzir uma síntese entre essas figuras clássicas do horror a partir de uma visão propriamente latino-americana. Não excluir Lovecraft de todo, mas pensar qual a forma do horror cósmico na Argentina. Agregar a tradição anglófona de maneira ativa, sem refazer o processo de apagamento das tradições locais; pelo contrário, tomando o endereço latino-americano como ponto central. Há, nisto um gesto político, uma espécie de tentativa de descolonizar as figuras clássicas do horror a partir de sua reconfiguração. Será que a potência estética de uma figura como o fantasma não tem nada a fazer quando pensada em termos propriamente latino-americanos, vinculados a nossa história?
A segunda resposta diz respeito a uma questão de método. Quando Mariana se pergunta qual é o seu horror, ela tenta fazer um exercício de lembrança de qual foi o primeiro texto ou expressão estética que a deixou aterrorizada. Foi um filme, um livro, uma história em volta da fogueira? Diz Mariana que não. Sua primeira lembrança de sentir um verdadeiro apavoramento é a experiência de ouvir os relatos de tortura e desaparecimento promovidos pela Ditadura Militar argentina, durante os julgamentos do regime transmitidos pela televisão. Os relatos dos advogados das vítimas, diz Mariana, trazia uma dimensão propriamente aterrorizante, mas que não vinha de uma dimensão sobrenatural: era um horror documental. Talvez a conexão entre essas duas respostas de Mariana, a reconfiguração das figuras clássicas do horror para dentro de um contexto latino-americano, e a apropriação da história de violências do continente, partindo do documental e unindo-a com essas figuras, sejam possíveis traços que singularizam a literatura de horror contemporânea na América Latina.
3.
Antes de desenvolver um pouco mais esses dois pontos, acho importante fazer um desvio histórico dentro da tradição da literatura fantástica em geral, e a latino-americana em específico. A fertilidade desse tipo de literatura na América Latina tem raízes históricas pontuais, mas também dialoga com um contexto político mais amplo, do ponto de vista de uma tentativa coletiva de criar uma espécie de autonomia estética, ou até mesmo uma identidade literária, mas também do ponto de vista de uma dimensão política, de conflito com a herança colonial. Não é possível tentar retomar essa tradição sem citar um livro fundamental, publicado em 1940 em Buenos Aires, chamado Antologia da Literatura Fantástica, organizado por Adolfo Bioy Casares, Jorge Luis Borges e Silvina Ocampo. Ainda que a literatura fantástica europeia já tivesse muito bem sedimentada ao menos desde o início do século XIX, essa coletânea tem um valor histórico importante como grande sistematização de uma poética literária que atravessa temporal e espacialmente grande parte do globo. Para nossos propósitos, é engenhoso como os organizadores da coletânea, além de incluírem textos de sua autoria no livro, também fazem uma seleção que inclui um conjunto bastante amplo de autores latino-americanos, alguns mais periféricos (caso de José Bianco, Arturo Cancera e Pilar de Lusarreta), outros mais reconhecidos (como Macedonio Fernandez, Leopoldo Lugones e Elena Garro). É um gesto performativo que inclui de maneira definitiva a literatura latino-americana como protagonista da tendência fantástica, gesto que só iria tornar-se mais efetivo na medida em que tanto Borges quanto Bioy e Ocampo passaram eles próprios ao cânone da literatura ocidental.
Olhando em retrospectiva, poderíamos até especular que a publicação dessa antologia tenha aberto um caminho desenvolvido mais tarde por autores de uma geração posterior, que não apenas sentiam-se inseridos em uma tradição literária, mas que também viam uma afinidade fundante entre o dispositivo estético da literatura fantástica e o próprio modo de existência latino-americano. Pois, se tomarmos definições provisórias do que é a literatura fantástica, vemos que ela é em geral definida como um tipo de literatura que se passa neste mundo, reconhecível como o “nosso”, em que um evento sobrenatural irrompe e abala a ordem natural das coisas. Para Todorov, por exemplo, o fantástico seria aquele momento de dúvida em que o protagonista (ou o leitor) duvida se o evento que testemunha é propriamente sobrenatural (implicando que o mundo tal como o conhece é regido por regras diferentes do que acreditava até então), ou se o evento é apenas uma perspectiva com explicação naturalista (uma alucinação, por exemplo), de modo que tudo segue igual. Essa definição de Todorov é bastante restrita, do fantástico como o espaço da dúvida, e já se convencionou que, de forma geral, caracterizamos como fantástico todo tipo de literatura que joga em algum nível com eventos sobrenaturais que ocorrem em nosso mundo. O teórico espanhol David Roas, por exemplo, propõe o fantástico como um gênero que sempre joga com algum tipo de ameaça. Uma ameaça ontológica: o medo de que o nosso mundo esteja prestes a se desfazer diante de nossos olhos, e que as regras e regulamentos que regem nossa vida cotidiana não sejam tão universais assim.
Essa definição pode ser aberta para dois lados que interessam aqui: por um lado, essa afinidade do fantástico com o horror, com o medo e com a violência num nível ontológico, como se o horror fosse o gênero que trabalha exatamente naquele espaço do conforto do habitual, virando-o de cabeça pra baixo. Um tipo de literatura que duvida, não sem uma boa dose de pavor, que o mundo seja como nos disseram que era. Que o mundo compartilhado esconda, abaixo dele, uma camada que decidimos coletivamente ignorar para podermos viver nossas vidas em paz. De certa forma, há algo conservador nesse entendimento do horror, como se qualquer alteração em nosso modo de vida produzisse um tipo de medo, como se a mudança da ordem das coisas não tivesse outra reação possível além do pavor. Por isso, é importante também ter em mente uma espécie de endereçamento do horror das narrativas: compreender quem de fato se apavora com os eventos retratados, e qual a natureza desse medo. Retomaremos mais adiante esse ponto.
Por outro lado, e gostaria de me debruçar mais demoradamente sobre este ponto, “a ordem natural das coisas” é uma ideia bastante problemática. A ideia de que o mundo funciona igual para todos é bastante recente, caracteristicamente moderna. O processo de modernização e secularização ocorrido na Europa e exportado para o resto do mundo por meio do colonialismo não deixa de ser um processo de imposição de uma visão de mundo específica, que se pretende universal. A ideia de “ordem natural das coisas”, com um conjunto de regras pré-definidas funcionando uniformemente em todos os espaços, não passa de uma visão parcial do mundo, com data de nascimento e endereço. É interessante pensar como a literatura fantástica é sempre pareada a sua contraparte, o realismo. A literatura fantástica, de gênero, é aquela que fala de coisas que só podem acontecer no campo da ficção, pois trata de eventos impossíveis “na vida real”, trata daquilo que é barrado da vida. Já a literatura realista, e seu próprio nome diz isso, toma para si uma representação fidedigna das coisas como elas são. Não há deuses, fantasmas ou demônios na literatura realista, pois essas coisas não seriam reais. Quando aparecem, figuram em um campo que nada tem a ver com a realidade.
4.
Mas o que acontece quando em determinado lugar, em determinada realidade, tais entidades tidas como sobrenaturais para a ontologia naturalista são tão reais como uma rocha, uma montanha ou uma molécula de nitrogênio? Essa é a afinidade entre a literatura fantástica e a América Latina que aludi mais cedo, desenvolvida por um conjunto de escritores em meados do século XX – aqueles que constituíram o chamado “novo romance latino-americano”. Um dos textos mais célebres desse período é a introdução de Alejo Carpentier para seu próprio livro, Reino deste mundo, de 1949. Nessa introdução, Carpentier desenvolve um argumento muito potente sobre a relação entre realismo e fantástico. Para ele, a literatura realista, com sua visão de mundo restrita ao mundo europeu e, portanto, excludente de diversas entidades tidas como reais em outras partes do mundo, seria incapaz de fornecer instrumentos ficcionais apropriados para narrar histórias não restritas ao contexto europeu. O realismo é insuficiente para dar conta da América Latina, diria Carpentier. Ao mesmo tempo, tomar a revolução haitiana, tema de seu romance, puramente como fantasia seria uma injustiça com os militantes que realizaram a primeira revolta libertadora de independência da modernidade, que inspirou movimentos semelhantes ao redor do mundo, da independência dos Estados Unidos à Revolução Francesa. Entretanto, para Carpentier, as ferramentas estéticas da literatura fantástica eram muito mais apropriadas para contar essa história do que as do realismo. Se trataria, portanto, de fazer um ataque a uma visão parcial do que é o real através da literatura fantástica, lançando mão dos dispositivos do sobrenatural para colocar em jogo o que há de mais real possível para a experiência de um latino-americano.
A síntese de Carpentier ressoou de maneira profunda nas letras latino-americanas. Ao se apropriar dos rituais e panteões haitianos como motores de um processo político libertador, abriu-se um caminho para que um conjunto de outros autores, como Miguel Ángel Asturias, Juan Rulfo e até Guimarães Rosa, tomassem para si traços ditos sobrenaturais que povoam os países da América para criar um tipo de literatura que se opusesse de maneira central a uma espécie de colonialismo ontológico europeu. Deuses maias, povos fantasmas e demônios do deserto se tornam índices de uma experiência fantástica, mas um “realismo aumentado”. Não mais tomamos essas figuras como superstições, resquícios de um passado superado, ou indicadores de um atraso civilizacional. A elaboração literária do sobrenatural passa a ser um dispositivo estético capaz de expressar um tipo de experiência propriamente não-europeia, a partir de um conflito com os limites estabelecidos do que é o real e o realismo.
Mas gosto muito também da forma como Borges o faz, invertendo um pouco o processo. Em seu célebre texto, Tlön, Uqbar e Orbis Tertius, podemos ver uma espécie de fábula decolonial (embora talvez o próprio Borges se revire na tumba ao ler esse tipo de análise, o que de certa forma me deixa feliz) em que o mundo fantástico, ainda não “desencantado” pela potência da modernização e expurgação da magia pela política e ciência, não se situa na periferia ou na colônia. Pelo contrário, seria a Europa, com suas irmandades de conhecimento oculto representada por Orbis Tertius, a responsável por produzir esse mundo fantástico, Tlön, organizado segundo regras minuciosamente planejadas, tal como um jogo de xadrez. Aos poucos esse mundo fantástico vai substituindo o mundo real, impondo a si mesmo: “o contato e o hábito de Tlön desintegraram esse mundo. Encantada com seu rigor, a humanidade esquece e volta a esquecer que é um rigor de enxadristas, não de anjos”. Borges parece afirmar não que o mundo da América Latina ainda seja encantado, mas que o encantamento de enxadristas dos europeus prevaleceu pela força da colonização. Ou seja, o mundo realista dos europeus é apenas um mundo fantástico hegemônico. A literatura latino-americana talvez possa ser entendida como um contra-feitiço, a criação de um mundo ainda mais amplo nessa disputa ontológica através da literatura.
Borges, possivelmente, já elaborou uma espécie de antídoto contra uma das críticas mais contundentes direcionadas a geração de escritores latino-americanos dos anos 60, agregados sob o nome de “boom” ou realismo mágico. Autores como Gabriel García Marquez, Carlos Fuentes e Julio Cortázar desenvolveram em suas obras um importante dispositivo literário de aceitação do fantástico. Ao contrário das definições que vimos anteriormente, a forma pela qual o sobrenatural aparece em suas narrativas não é recebido com espanto ou amedrontamento, mas sim com uma espécie de naturalidade cotidiana. No clássico conto A Casa Tomada, de Cortázar, por exemplo, as entidades que aos poucos vão invadindo a casa dos irmãos protagonistas não passa de uma chateação, a necessidade de uma readequação da rotina dos espaços de convivência. Em Chac Mool, de Carlos Fuentes, a reencarnação de um deus asteca não faz o protagonista temer por sua sanidade mental ou pela costura divina do real - ele apenas se vê obrigado a aguentar uma divindade mesquinha, demandando sacrifícios constantes que atrapalham seu dia a dia. Em Cem anos de solidão, de Gabriel García Marquez, o que produz assombro nos habitantes de Macondo não são as levitações ou constantes rituais mágicos, mas sim um cubo de gelo.
Essa relação mais cotidiana com o sobrenatural, um importante manifesto acerca das dinâmicas coloniais, tem sido criticada por operar uma espécie de exotização da experiência latino-americana, como se aqui fosse uma terra mágica povoada por entidades maravilhosas acessíveis apenas para nós, um povo “diferente”. Justas as críticas, mas se tivermos boa-vontade (o que em geral não tenho) com esses autores dos anos 60, poderíamos argumentar aqui que não é a nossa terra que é mágica, mas a Europa/Tlön que amplia sua própria magia a uma realidade universal e não sabe como agir quando se depara com algo diferente. A aceitação do fantástico, como argumenta Irlemar Chiampi, é um dispositivo estético importante, pois revela o europeu/colonizador na posição ativa de juiz da realidade do outro. ‘Aqui nós achamos isso normal, por que você acha estranho? É assim que as coisas funcionam aqui, por que deveriam funcionar de outra maneira?’ O horror ou o espanto é colocado para fora do plano diegético, em conformidade com o que apontamos antes acerca do endereçamento do horror: quem se assusta quando um homem alado cai do céu?
5.
Achei importante realizar esse desvio histórico não apenas para discutir um pouco essa afinidade entre a literatura fantástica e a América Latina, mas também para tentar destacar o que me parece singular nas abordagens contemporâneas. Vimos como os autores do boom partiam da perspectiva de “naturalizar o fantástico” como forma de manifesto ontológico. De certa forma, contudo, essa perspectiva exclui o horror como efeito estético, situando-o fora da narrativa. Como conciliar isso com o fato de que o gênero marcado e analisado aqui é precisamente o horror? Minha hipótese é de que a geração contemporânea opera de forma inversa à dos autores do realismo mágico. Se nos anos 60 era importante naturalizar o fantástico, parece que o traço distintivo das narrativas contemporâneas é desnaturalizar o real através do fantástico. Explico.
Quando Mariana Enriquez se pergunta o que é o horror para ela, cita especificamente um fato histórico: os relatos de tortura, morte e desaparecimento das vítimas da Ditadura Militar argentina. Tais relatos são documentos e produzem um tipo de efeito de apavoramento: como foi possível em um país moderno no século XX perpetrar tais horrores? Ao falarmos da ditadura de um ponto de vista documental, produzimos um tipo de efeito fundamental para a denúncia e a ação política. Entretanto, um relato desse calibre tem o potencial de produzir ainda mais, para além da discussão coletiva acerca de justiça, responsabilidade e reparação. Além de ser também um relato íntimo, é uma narrativa que parece ter sido naturalizada. “Bom, horrores acontecem, regimes ditatoriais ocorrem, pessoas morrem”. Tais eventos parecem integrar a “ordem natural das coisas”, não constituindo um abalo das estruturas da realidade, ainda que resguardem uma violência muito maior que o avistamento de um vampiro. E é por isso que Mariana Enriquez não para por aí: não contente em denunciar a ditadura como horror, ela a transforma em uma história de fantasmas. Usa todos os dispositivos ficcionais desenvolvidos para dar medo e transforma aquilo que é da ordem do natural, do real, do cotidiano, em matéria-prima do horror. Para a geração contemporânea, não são os deuses, feitiços, vampiros ou monstros que pertencem ao campo do fantástico e do sobrenatural. O que de fato é o horror, o inconcebível numa ordem natural das coisas, é a ditadura, o colonialismo, a escravidão, a opressão de gênero, sexualidade e classe, a desigualdade social e urbana, a constituição da família burguesa. Tudo o que consideramos parte do nosso dia a dia, da condição da América Latina, é ficcionalizado pelas lentes do horror de forma a expressar um tipo de experiência que desnaturalize o que nos é apresentado como parte do real. O realismo latino-americano não pode ser outra coisa que não uma história de horror, uma reconfiguração de sua história sob as lentes do mais violentos dos horrores cósmicos. Trata-se de mostrar Tlön em sua verdadeira forma: monstruosa.
Por isso Mariana Enriquez se apropria da estrutura clássica da história de fantasmas para falar da ditadura. Não se trata apenas de reconhecer os desaparecidos, mas de torná-los aparições. No conto Quando falávamos com os mortos, um grupo de meninas é retratado brincando com uma tábua de Ouija, como fazem tantos adolescentes. O conto dá uma guinada quando elas decidem contatar seus conhecidos desaparecidos durante o período ditatorial: pais, tios, primos, amigos. Quando aparecem, os fantasmas estão confusos: não sabem onde estão, nem se estão propriamente mortos. São fantasmas que não tiveram nem sequer própria existência como fantasmas reconhecida.
A reconfiguração da figura do fantasma por Enriquez para desnaturalizar a ordem colonial, fazer da realidade bruta da América Latina filme de terror, talvez seja uma chave de leitura para analisarmos a produção contemporânea no gênero. Tomei ela como caso paradigmático, mas poderíamos falar de Samanta Schweblin e a utilização dos grandes latifúndios de soja no interior da Argentina e os efeitos dos agrotóxicos nas populações locais como um gigantesco monstro invisível; da apropriação de Fernanda Melchor de notícias da imprensa sensacionalista de assassinatos e feminicídios motivados pela disputa de territórios entre empresas petroleiras, a polícia e o narcotráfico como uma atualização da perseguição às bruxas como forma de promover a transição de um modo de vida agrícola para um industrial; da persistência do genocídio indígena através da vingança e da possessão através de crimes direcionados a populações marginalizadas no interior da Bolívia em Liliana Colanzi; das dinâmicas de opressão doméstica e do abuso parental em Maria Fernanda Ampuero; da reconfiguração do folclore andino e virtual como caso horror corporal em Mónica Ojeda. Todas essas autoras parecem partir do documental e do histórico para se apropriar do arcabouço de personagens da literatura de horror e produzir uma outra América Latina – não aquela solar e exótica do realismo mágico, mas uma devastada pelas dinâmicas de nossa história de violências. Como disse Samanta Schweblin em recente entrevista, “Viemos todos de países latino-americanos que foram e seguem sendo sistematicamente violentados pelas políticas externas e internas, pelas maneiras como nossas histórias têm sido manipuladas, fomos e seguimos sendo saqueados por mais de 500 anos. Do que mais escreveríamos senão a partir do insólito e do horror?"
Ao falarmos de uma história de violências, devemos sempre lembrar que o relato dessas histórias é também um testemunho de resistência contra essas violências. Pois aqui, e talvez seja um dos pontos mais interessantes dessa tendência contemporânea, aquelas figuras tratadas como perpetradoras do horror (como os monstros e os fantasmas) surgem como aliados. Aqueles que foram tratados como os inimigos, os que apavoram, parecem retornar para assombrar os verdadeiros monstros da história latino-americana. Somos nós os fantasmas, as vítimas da violência colonial, ainda capazes de meter medo em general.
Daqui pra frente, pretendo desenvolver com mais cuidado análises de textos ficcionais que trabalham com esses dispositivos que enumerei acima, de forma a tentar entender como opera a literatura de horror latino-americana contemporânea, a partir de figuras clássicas do horror que aparecem de forma mais proeminente e os temas históricos, políticos e sociais que carregam em si. No próximo texto, seguirei falando da figura do fantasma, discutindo as dinâmicas temporais que evoca em relação à história recente das ditaduras militares latino-americanas, seus desaparecidos e os rastros de violência que ainda assombram o nosso continente.
Olá. Muito interessante as reflexões apresentadas no seu texto, em especial a ênfase das dinâmicas históricas e sociais nesse tipo de literatura "fantástica". Certamente, é uma chave muito rica de leitura. Já conhecia parte da produção do "canône" fantástico, quase todos homens, com a exceção da Ocampo. E é incrível poder acompanhar hoje o talento e a potência das escritoras da América do Sul. Das autoras mencionadas, já conhecia a Enriquez e a Schweblin. Curioso pra ler a Melchor e as demais escritoras que você mencionou. Continuarei acompanhando com muito interesse os próximos textos. Até e muito obrigado.