Esse ensaio foi publicado originalmente na edição 206 (Abril/2023) do saudoso periódico Suplemento Pernambuco. Como tive muita dificuldade de encontrar o arquivo do ensaio online, decidi republicá-lo por aqui para registro. Também tomei essa decisão como forma de reavivar um pouco essa newsletter e participar do debate que apareceu na imprensa nas últimas semanas, com um texto de Ruan Gabriel no Globo e de Walter Porto, na Folha de S. Paulo. Acho que há um interessante cruzamento de ideias entre os três textos, tanto do ponto de vista dos autores e autoras abordados, mas especialmente em suas convergências e divergências.
As artes são de Hana Luzia.
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No conto Firestarter, de Cristhiano Aguiar, acompanhamos um grupo de jovens caçadores de incêndios. Trata-se de uma febre nas redes sociais: grupos que se organizam para filmar com seus celulares, da forma mais espetacular e arriscada, diferentes tipos de fogo que, nesse futuro próximo, parecem estar se multiplicado vertiginosamente. Usam um aplicativo, o “Tá Pegando Fogo”, para registrar e comentar os diferentes tipos de fogo que acometem os mais variados lugares, dos centros das cidades às periferias rurais. Há uma miríade de categorias dos tipos de incêndio, que variam desde seu efeito visual à violência com que devasta o seu entorno. Cria-se toda uma gramática da apreciação das chamas: uma percepção aguçada acerca da qualidade artística dos vídeos, mas também dos desafios e dificuldades que cada vídeo demandou para ser realizado. Em Firestarter, publicado no livro Gótico nordestino (Alfaguara, 2022), há um ímpeto de não apenas testemunhar e registrar a catástrofe que já chegou, mas sobretudo de extrair dela algum prazer estético.
Em determinado momento, os personagens do conto, que registravam um pequeno incêndio num descampado no interior do Agreste sergipano, recebem notícia em seus aplicativos de que um fogo ainda maior ocorre em um local não muito longe dali. Levantam acampamento, preparam seus celulares e rumam de van até o local. Chegam a um antigo engenho de cana, transformado em complexo hoteleiro, que arde espetacularmente. As chamas já tomaram toda a antiga plantação, e se alastram inclementes contra a casa-grande, o complexo de destilação, a antiga senzala.
Por mais que se trate da imagem de um futuro, essa queimada generalizada em plantações de cana não deixa de remeter a um passado. É notável como faz parte do processo de monocultura da cana sua queima para a colheita, produzindo incêndios que se alastram por quilômetros nas beiras de estrada. São fogos controlados, produzidos pelos agricultores de forma a possibilitar o trato do solo. Em Firestarter, parecem ser fogos espontâneos, “naturais”, que irrompem fora da intenção humana. Nenhum dos personagens se questiona quanto à causa de tais incêndios, permanecendo fascinados por seu efeito, responsáveis apenas por testemunhar e registrar o acontecimento.
É uma imagem dialética, à moda de Walter Benjamin, que coloca em cena um conjunto de oposições: a destruição do fogo aliada ao impulso criativo dos vídeos; o fascínio pela estética das chamas aliado ao medo da catástrofe que se avizinha; um futuro arruinado pelo desastre das chamas generalizadas que não se furta em destruir também os rastros de um passado que nos trouxe até aqui. O engenho, símbolo das práticas coloniais e de uma história de violência contra as populações locais e à terra, também é consumido pelos incêndios que ajudou a construir.
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O impulso dos personagens do conto de Cristhiano Aguiar de registrar a catástrofe parece espelhar uma atitude importante que já se avizinha em nosso horizonte: que tipo de histórias conseguimos contar perante esses tempos de crises e desastres ambientais? O que podemos dizer, o que podemos apreender, diante de um planeta que aos poucos parece se transformar em algo absolutamente distinto do que conhecíamos, e cada vez mais hostil às formas de vida que o habitam? O que podem as narrativas, de que serve contar histórias e registrar nossa experiência, diante da perspectiva, cada vez mais realista e aterradora, da nossa extinção coletiva?
Contar uma história coerente sobre a nossa presente situação parece ser um dos imperativos de nossa época. Vemos a crise climática contemporânea sendo contada no cinema, nas notícias de jornal, na literatura. Mesmo as ciências, com suas particularidades, não deixam de tomar para si o desafio de dar inteligibilidade ao que parece nos acometer com uma inevitabilidade sufocante.
Uma das narrativas mais potentes acerca dos nossos tempos é aquela articulada a partir do conceito de Antropoceno. Desde o início desse século, um conjunto de pesquisadores de áreas científicas tão diversas quanto a Geologia e a Química propõe que estamos entrando em uma nova época geológica, marcada pela variação generalizada das condições de habitabilidade do planeta. A acidificação dos oceanos, o aumento nas temperaturas médias, a extinção cada vez mais radical da biodiversidade, o derretimento das geleiras. De acordo com essas pesquisas, tais manifestações não são casos isolados, mas sim os efeitos de um regime geral, que muda completamente as condições que foram estáveis nos últimos 12 mil anos, durante a época denominada de Holoceno. Para além desse novo regime climático, o conceito de Antropoceno traz consigo também um dado fundamental: o verdadeiro agente que produziu essa variação é a humanidade. Somos nós, como entidade genérica, que através de nossas práticas de manipulação do ambiente, que somos responsáveis pela produção de um novo planeta, hostil a grande parte das espécies que aqui habitam – nós inclusos.
Sempre soubemos do impacto local que determinadas práticas produziam no ambiente – a degradação de corpos de água, envenenamento do solo, desapropriação de ecossistemas. A novidade trazida pelos estudos do Antropoceno é que tais efeitos locais, produzidos pela ação e intervenção humana, são responsáveis por alterar de maneira totalizante os ciclos biogeoquímicos do planeta. É como se estivéssemos vivendo em um outro planeta, totalmente desconhecido, diferente daquele em que nós e as espécies com as quais partilhamos a Terra pudemos nos desenvolver. Os humanos deixam de ser apenas habitantes do planeta e se tornam agentes geológicos, tais como os que foram responsáveis pelas variações que a Terra foi submetida ao longo de sua história profunda.
Tal como é próprio do discurso científico, talvez essa história seja genérica demais. O modo pelo qual as evidências científicas se acumulam são sempre articuladas a partir de uma média geral: um aumento médio da temperatura em todo planeta, um aumento médio na perda de biodiversidade, um aumento médio na concentração de gases estufa na atmosfera. A variabilidade nos modos onde isso ocorre e com qual intensidade é um fato que se dilui em nome de afirmar um nome geral para o novo regime climático. Entretanto, na generalidade a particularidade se dilui. Essa dinâmica opera até mesmo no nome desse novo regime: Antropoceno. O humano responsável pela variabilidade do regime climático da Terra parece ser genérico, um humano em geral. Como argumenta Eileen Crist, há uma espécie de pobreza em nossa nomenclatura do Antropoceno, pois esconde e naturaliza as dinâmicas que foram de fato responsáveis pela inauguração do regime, produzindo até mesmo uma espécie de narrativa triunfalista dos humanos, como se a alteração fundamental do ambiente no qual vivemos fosse o ponto final em uma longa jornada de domínio do mundo natural.
Por isso o principal debate contemporâneo acerca do Antropoceno diz respeito a partir de quando, concretamente, os humanos passaram a deixar sua marca indelével na superfície geológica do planeta. É o debate acerca das marcas antropogênicas, ou o golden spike, que seria o momento geológico mais preciso de quando o Antropoceno começou. Isso pode parecer um debate para especialistas, afinal, os efeitos estão aí para todos verem e sentirem, que diferença faria saber quando o Antropoceno começou? Entretanto, e isso é fundamental, dependendo do fato científico capaz de ser produzido para registrar o início do Antropoceno, variam as histórias que somos capazes de contar acerca dele. Faz diferença dizer, por exemplo, que a invenção do motor de combustão foi responsável por uma liberação de carbono de tal magnitude que alterou o ciclo biogeoquímico do planeta, ao invés de dizer que foram as práticas de agricultura que fizeram a nossa primeira marca antropogênica no planeta. O que dizer então do aumento vertiginoso dos índices de limites planetários no pós-guerra? O que isso nos diz sobre os humanos responsáveis, e inclusive as causas, do nosso presente colapso coletivo? E o que diríamos então das práticas de colonização, com suas plantations e monoculturas, sustentadas sobre os corpos escravizados de africanos e indígenas para alimentar as revoluções tecnológicas europeias?
É nesse sentido que o discurso do Antropoceno deixa de ser apenas científico, e se torna objeto de disputa de narrativas distintas. O fato científico precisa de um contexto, uma história, para que se sustente. E essa história, essas histórias, tem a capacidade de fracionar a dimensão genérica própria da ciência em direção a compreensões mais localizadas e precisas acerca não apenas do início do Antropoceno mas também das políticas possíveis capazes de dar conta de sua existência.
Em certo sentido, há quase um imperativo em fracionar o Antropoceno, fazê-lo multiplicar-se em variadas histórias que, por sua diversidade, façam dele algo inteligível em sua particularidade. A narrativa triunfalista, ainda que de sinal trocado, parece ser genérica demais para resolver os dilemas de nossa época. Por mais que haja, constituída, uma disputa acerca da nomenclatura dessa nova época geológica, que diz respeito ao que de fato causou essa variação coletiva no modo de existência da Terra (Capitaloceno, Necroceno, Tecnoceno, etc), parece que há algo na necessidade de pluralizar esse nome em Antropocenos – tomando outras formas de se contar histórias para isso. Como diz Donna Haraway, precisamos de histórias que contem histórias – ou seja, é preciso cada vez mais registrar nossos testemunhos, narrar nossa experiência perante esse objeto para que ele deixe de ser monolítico, deixe de esconder histórias e políticas sob seu nome, deixe de ser grande – ou único – demais. Por isso a literatura (e a literatura brasileira) como forma de produzir também imagens capazes de rivalizar com a unidade do Antropoceno a partir de sua produtividade. Talvez, em vez de um Antropoceno, possamos começar a falar em Antropocenos do Sul.
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No romance Cidades afundam em dias normais (Rocco, 2020), de Aline Valek, é contada a história de Alto do Oeste, uma cidadezinha no interior do Cerrado brasileiro que ressurge do fundo das águas de um lago artificial depois de ter sido submersa vinte anos antes. Apesar de figurar em algumas notícias, o fato insólito de uma cidade no meio do nada ter sido submersa e posteriormente ter ressurgido não parece ser digno de nota, exceto para Kênia, fotógrafa protagonista do romance, que decide documentar a gradual volta dos antigos moradores para a cidade. O interesse de Kênia não deixa de ser pessoal, afinal, ela própria é nascida em Alto do Oeste, e essa cidade, agora pintada com as cores pasteis do barro do fundo de um lago, é uma espécie de palimpsesto de sua vida e memórias.
A falta de interesse acerca desse acontecimento insólito diz respeito, é claro, a posição marginal ocupada por Alto do Oeste. É uma cidadezinha pequena, com uma população empobrecida, em uma região rural e afastada dos grandes centros econômicos do país. Nem seu desaparecimento gradual, nem seu reaparecimento súbito, parecem atrair qualquer tipo de atenção, ainda que esses acontecimentos resguardem uma qualidade profética em si. Como disseram Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Danowski, no livro Há mundo porvir?: Ensaio sobre os medos e os fins, parece que no Antropoceno a flecha do tempo se inverteu. Antes, o futuro chegava mais cedo nos grandes centros, com suas promessas de progresso e desenvolvimento. Agora, o futuro chega antes nas periferias, prenunciando a catástrofe que se avizinha para todos.
Nunca chegam a ficar claros os motivos precisos pelos quais a cidade afundou. Temos alguns indícios, e o mais forte é que o lago artificial que ocupa a porção vizinha da cidade é o resultado do desvio de um rio pelos primeiros colonizadores da região. O Rio dos Patos, como era chamado (mas onde estão os patos?), foi gradativamente aniquilado no processo de modernização e urbanização que deu origem a Alto do Oeste. Junto com o desaparecimento do rio, também as populações indígenas, do povo Xavante, foram sendo expulsas ou violentadas de suas terras para dar lugar ao processo de modernização brasileiro. Há ainda, em Alto do Oeste, uma memória desse passado, cada vez mais sutil acerca desses processos, o que dificulta torná-lo evidente, criar os nexos causais entre a intervenção humana no ambiente e a catástrofe que lhe sucede. Especialmente pelo fato de que quem resguarda essa memória, para todos os efeitos, é uma população esquecida.
Tanto o lento e gradual desaparecimento de Alto do Oeste quanto sua lenta e gradual reaparição jogam luz sobre um dos aspectos mais relevantes acerca do Antropoceno visto do Sul, que é sua dimensão quase imperceptível, invisibilizada. Estamos acostumados a ver imagens de desastres ambientais, furacões destruidores, incêndios que devastam largas porções de terra, vazamentos de óleo, erupções de vulcões. Entretanto, há um tipo de efeito muito mais silencioso, uma espécie de violência lenta, como cunhou Rob Nixon, que aos poucos se acumula de maneira imperceptível, exceto para aqueles que a vivem cotidianamente. Há uma economia da atenção em jogo, em que nossos olhos são atraídos pelas imagens espetaculares de grandes catástrofes mas desviam dos processos que se conjugam para sua realização. Há uma dupla invisibilidade ocorrendo: a violência e o efeito devastador das mudanças climáticas é invisível porque as populações marginalizadas já estão invisibilizadas. Como vem insistindo Anna Tsing, o Antropoceno carrega em si também um imperativo para as artes da atenção.
Com sua câmera, Kênia, disposta a registrar as memórias dos habitantes de Alto do Oeste, documenta uma longa história marcada por processos de desapropriação de terras de populações locais em nome de práticas de exploração e extração ambiental. É através do símbolo de uma cidade ressurgida que se tornam visíveis as práticas que, de outra forma, poderiam ficar soterradas. Mas não se trata apenas de refazer o caminho dessas memórias e construir um percurso de como chegamos até aqui. Pois o que Kênia documenta não são apenas as paredes embarradas, a infraestrutura corroída pela água, os fantasmas das pessoas e espécies que foram aniquiladas no processo de submersão. Ela documenta também o súbito retorno dos antigos moradores da cidade, que prontamente se realocam às suas antigas casas para reconstruir sua vida em meio ao precário. A falta de energia elétrica, as condições mínimas de subsistência material e a ausência de uma rede básica de esgoto não impedem que em pouco tempo Alto do Oeste volte a ser habitada. Mas não se trata de uma opção ou de um desejo, de habitar em meio à destruição: é preciso viver nas ruínas pois não há mais para onde ir.
Uma das imagens mais convocadas quando se discute o Antropoceno é um geólogo do futuro longínquo, investigando os sedimentos da terra e ali encontrando traços da presença humana: microplásticos na composição química do basalto, radiação nuclear nos estratos de montanhas, cidades inteiras soterradas na composição de um vulcão. Kênia, a protagonista do romance de Aline Valek, parece ser uma dessas figuras deslocadas no tempo. Ela serve como uma geóloga do Antropoceno no presente, disposta a documentar as memórias que indicam a construção dessas ruínas que serão cada vez mais comuns. O que Kênia introduz, como documentarista, é a composição também política e social que se imprime nas paredes das ruínas, as marcas não apenas materiais das ações humanas na construção dos ambientes.
Como sempre repetiu Bruno Latour (1947-2022), acerca de um estado geral do Antropoceno, onde quer que procuremos o natural, encontramos o humano, e vice-versa. Já estamos acostumados a entender o mundo natural como contaminado pelos resíduos da mineração, a atmosfera poluída pela queima dos combustíveis fósseis, as águas domina- das pelos espólios da civilização. Mas é preciso também fazer a operação inversa: compreender aquilo que sempre tomamos como próprio do mundo da cultura (a política, a sociedade, a subjetividade) também em sua dimensão natural. Há toda uma “natureza” na forma pela qual nos organizamos coletivamente, que decidimos ignorar por tempo demais, achando que estávamos ejetados desse mundo, que éramos seres especiais eminentemente culturalizados. A intrusão das mudanças climáticas no planeta é uma espécie de aviso de emergência de que toda a política humana é também ambiental.
Os efeitos nefastos de um futuro que já começa a pressionar o presente são um lembrete de que por mais que tenhamos nos esquecido desses efeitos ambientais de nossas políticas, a Terra não esquece. Como uma espécie de correlato desse impulso de registrar que se observa nos textos de Aguiar e Valek, há essa característica fundamental da Terra que é a de registrar, em sua própria superfície, as variações pelas quais sofreu. A Geologia, como ciência, se constitui como uma grande disciplina de leitura dos registros da Terra, interpretando os indícios marcados nas rochas como um arquivo de eventos passados. É claro que se tratam de eventos traumáticos: parecem ser apenas acontecimentos de uma magnitude muito ampla que são capazes de se imprimir diretamente no corpo da Terra. Eras do gelo, variações na composição química do ar, deslocamentos de placas tectônicas, impactos de corpos celestes, erupções vulcânicas, grandes extinções. É através desses traumas que temos uma noção da história profunda de nosso planeta, marcada por um rastro de violências.
Mas se essas violências poderiam ser compreendidas como naturais, com o surgimento do Antropoceno vemos como se tornam cada vez mais culturais, inclusive impossibilitando criar uma divisão tão precisa entre essas dimensões. A Terra agora registra os traumas que pareciam dizer respeito apenas aos assuntos humanos, parece ser sensível àquilo que era puramente cultural, espiritual, filosófico, político. Se Freud elaborou sua teoria do trauma inconsciente baseado em uma metáfora geológica, o Antropoceno refaz esse circuito e nos obriga a pensar, em algum nível, os traumas propriamente psicológicos da Terra. Se por um lado observamos que as violências que cometemos contra a Terra se voltam contra nós, através das práticas de extrativismo e exploração que se tornam eventos violentos catastróficos, podemos observar que as violências que cometemos contra nós mesmos também são registradas pela Terra. Como destaca a geógrafa Kathryn Yusoff, a Geologia por décadas ignorou as marcas deixadas na superfície terrestre por práticas como a escravidão e as plantations, o colonialismo e imperialismo europeu, os genocídios contra populações indígenas e a produção das monoculturas e mineração. Mas a Terra lembra e expõe de forma didática em sua própria carne não apenas a história da presença humana no planeta como, sobretudo, sua história política.
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Em um recente ensaio publicado no Brasil, intitulado O grande desatino (Quina Editora, 2022; tradução: Renato Prelorentzou), o crítico e romancista Amitav Ghosh lista um conjunto de provocações acerca da relação do Antropoceno com a literatura. Dentre suas colocações, há uma que se destaca no que diz respeito ao modo pelo qual a ficção científica e a literatura especulativa parecem se impor enquanto modo de narrar. Ghosh vincula o próprio surgimento da ficção de gênero ao Antropoceno, citando o conhecido episódio da erupção vulcânica que isolou um grupo de escritores em uma casa sem poder se locomover, possibilitando assim fazer com que Mary Shelley desenvolvesse a narrativa de Frankenstein (1818), sem dúvida fundadora do que conhecemos como o horror e a ficção científica modernas. Entretanto, afirma que o estado geral de crise climática precisa se desvincular de modos narrativos não-realistas, de que seria necessário que a ficção literária tradicional se apropriasse do evento do colapso planetário como o que há de mais real no contemporâneo, algo que Ghosh observa não ocorrer.
Há uma dualidade interessante no argumento de Ghosh: por um lado, haveria uma espécie de afinidade entre a ficção científica e o horror em sua relação com o Antropoceno, mas que tal afinidade tiraria uma espécie de “potência documental” da literatura, por serem gêneros tomados como antirrealistas. Ou seja, a crise climática seria tomada coletivamente como mais um fenômeno imaginativo, um evento sobrenatural, um planeta alienígena. A pergunta que fica é: mas o planeta do Antropoceno não se trata, sob certo sentido, de um planeta alienígena?
Tanto as obras de Valek quanto de Aguiar não parecem ter muitos problemas em ser diretamente vinculadas ao gênero especulativo. Imaginam futuros, tecnologias, eventos e inclusive paisagens que escapam a uma “descrição fidedigna” da realidade, campo do realismo, na visão de Ghosh. Mas o fato de que estamos testemunhando um aumento de ficções que não se reduzam a um conceito de realidade restrito parece dizer respeito ao fato de que os próprios contornos do que experimentamos como realidade variaram. Se tomarmos os relatórios científicos dos cientistas do clima a sério, nos depararemos com a dimensão de que a variabilidade das condições de habitabilidade trazidas pelo Antropoceno se referem a uma mudança geral na própria estrutura das regras daquilo que chamávamos de natureza ou de realidade. Já escapamos de um estado de normalidade, e reduzir o que ocorre a uma forma de narrar conformada por padrões e noções que parecem cada vez menos se aplicar a nossa condição pode, por sua vez, tirar a potência do fenômeno. Talvez a Terra que hoje habitamos seja, de fato, um planeta alienígena comparado ao que convencionamos chamar de nossa casa. Ou melhor: talvez o real descrito pelo realismo já soe como ficção científica para nós.
É interessante também o gesto de enquadrar sob as formas da ficção científica os eventos do Antropoceno com a finalidade de desnaturalizá-los. Assim como é preciso todo um processo literário para conseguir construir um mundo estranho, um mundo outro, com suas próprias regras e dinâmicas de funcionamento em obras de ficção científica, nos vemos perante um desafio semelhante quando nos dispomos a descrever as dinâmicas que foram responsáveis pelo Antropoceno. Os processos não são evidentes, aquilo que achávamos estar separado está junto, os efeitos não seguem uma lógica causal. Submeter essa variação geral no modo de vida ao enquadramento do realismo nos parece reafirmar que ainda vivemos no mesmo lugar e tempo. As gramáticas historicamente estabelecidas nas literaturas de gênero parecem capazes de reenquadrar o Antropoceno no que ele possui de mais singular, a sua estranheza em relação ao que costumávamos de chamar de realidade. Parece que, ao contrário do que argumenta Ghosh, é a literatura especulativa que está melhor equipada em um momento no qual precisamos aprender a viver em um planeta alienígena em que o futuro já chegou.
Uma relação tensa com o realismo não é estranha à literatura produzida na América Latina. São célebres as disputas que caracterizaram, ao longo do século XX, diferentes fórmulas de singularizar a experiência literária propriamente latino-americana através de narrativas não propriamente realistas. Como se notabilizou nos trabalhos de autores como Jorge Luis Borges, Gabriel García Márquez, Alejo Carpentier, Amparo Dávila, Silvina Ocampo, Julio Cortázar, entre outros, havia uma disputa sobre a ideia reduzida, e colonial, de uma realidade que seria a mesma para todos. As tentativas de elaborar um tipo de poética capaz de dar conta da experiência de viver aqui, que não correspondia ao que a Europa entendida como “realista”, geraram as polêmicas formulações do realismo mágico, ou real maravilhoso, que afirmavam que uma literatura latino-americana engajada com sua própria realidade necessariamente romperia com as convenções do realismo europeu. Se por um lado, e com certa dose de razão, muitos acusaram certos autores de “exotizar” a experiência latino-americana, como se aqui vivêssemos em uma terra encantada, também não se pode esquecer o correlato mais radical e que ainda persiste como novidade: a própria forma do realismo não deixa de ser uma naturalização de uma certa realidade ela própria encantada, com suas regras arbitrárias e localizadas, que exclui a experiência e as vivências de grande parte do mundo. Não há nada mais exótico que o mundo europeu, e a transformação de sua realidade (localizada como “natureza”) permanece como desafio a ser enfrentado em todos os campos, inclusive o da literatura.
O Brasil não parece estar tão enraizado nessa tradição. Apesar de nossa história e geografia estarem ligadas umbilicalmente com a América Latina, há singularidades em nossa literatura que difere bastante das ficções de língua espanhola do continente. Não faltam exemplos de escritores brasileiros que elaboraram, ao longo dos séculos XIX e XX, variações do fantástico. Mas, de um ponto de vista genérico, a literatura não-realista brasileira parece estar tomando fôlego apenas recentemente, tanto do ponto de vista da produção contemporânea, como também de uma reavaliação e redescoberta de sua própria história. Esse momento, no qual as linhas da literatura especulativa se cruzam com as do Antropoceno, parece ser frutífero também para reler a tradição, tomada como realista, sob as lentes do contemporâneo. Pois não haveria também uma afinidade, de certa literatura brasileira, com a questão climática? Se tomarmos, por exemplo, a chamada “literatura da seca”, não nos deparamos com um tipo de ambiente que soa muito com os relatos antecipatórios de certos cientistas à respeito da condição que nos encontraremos em um futuro próximo?
Há um convite no ar para reler com as lentes do Antropoceno trabalhos como O quinze (1930), de Rachel de Queiroz, que retrata de maneira brutal as viagens daqueles que chamaríamos hoje de migrantes climáticos, na época tomados como retirantes, e as políticas eugenistas operadas pelo Estado brasileiro perante a seca devastadora de 1915. Ou a comunidade multiespécie de Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos, que andarilha por uma zona devastada, cenário quase pós-apocalíptico, onde o sol, a fome e a falta de perspectiva produzem a necessidade de um modo de existência totalmente novo, rompendo as lógicas tradicionais de subsistência. Ou ainda o poema Morte e vida severina (1955), de João Cabral de Melo Neto, onde o personagem principal vaga por um Sertão dominado pela extinção coletiva, em que a própria morte se constitui como principal fonte de subsistência daquela região. Os exemplos abundam, mas sua mera descrição nos coloca perante uma poética bastante bem acabada das formas pelas quais a Terra pode violentar seus moradores. O que torna tais textos verdadeiros representantes do Antropoceno, e que foi invisibilizado de certa forma pela crítica, é o fato de que as secas ali descritas não se tratam de um fenômeno “natural”, de uma região que é assolada pela estiagem por características próprias. Como bem destaca Rondinelly Gomes Medeiros, a seca no Sertão é menos um evento natural e mais uma construção sociopolítica de combate às populações que nele vivem. Antropoceno avant la lettre, descrito em seus minuciosos detalhes em uma poética singularmente brasileira. A flecha do tempo de fato se inverteu, nosso passado se torna um guia para nosso futuro.
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O romance A extinção das abelhas (Companhia das Letras, 2021), de Natalia Borges Polesso, parece reativar, através da literatura especulativa, certos traços dessa tradição. O romance acompanha a protagonista Regina em um processo de degradação gradual em dimensões ambientais, políticas e subjetivas. Enquanto vemos as notícias cada vez mais constantes da extinção das abelhas, evento esse que causa uma cascata de efeitos nefastos, a organização social do modo como a conhecemos parece se desfazer. A crise climática já chega a níveis assombrosos, e as políticas de remediação de seus efeitos são draconianas para alguns: há cada vez menos oportunidades de trabalho, as zonas residenciais passam a ser tuteladas por milícias, os nossos representantes adotam políticas abertamente fascistas. Em paralelo a isso, Regina entra em um processo cada mais evidente de precariedade material e subjetiva. À medida em que precisa inventar formas de sobreviver através da internet, fazendo vídeo chats eróticos, sua própria noção de realidade vai se desfazendo, chegando a uma crise psicótica devastadora.
O romance de Polesso parece levar a sério aquilo que Félix Guattari, nos anos 1980, já preconizava, no que chamava de “as três ecologias”: há uma continuidade entre as dimensões ambiental, social e subjetiva. As condições de degradação de uma dessas dimensões necessariamente atravessam, ou transbordam, para os outros registros. Pensar a crise ecológica apenas de seu ponto de vista material nos faz perder de vista o fato de que o ambiental está inscrito em ecologias mais amplas, que também envolvem aquilo que é da ordem do político, do social e do subjetivo. O processo narrado por Polesso é didático nesse sentido: elabora um estado de precariedade geral que assola dos mais amplos processos aos recônditos mais íntimos. Viver em um estado de ruína ambiental é também testemunhar tal ruína se acumulando através das políticas que a produzem, e que nos levam a uma degradação de nossas relações humanas.
Em determinado momento da história, o estado do Rio Grande do Sul, onde Regina vive, vai sendo fechado. Sanções governamentais passam a ser impostas, o fluxo de materiais começa a rarear, e a população que não tem condições de migrar é abandonada à própria sorte. Regina, em um estado de total desconexão com o seu entorno, motivado por um evento traumático, é encontrada por um grupo de amigas que está fugindo em direção à fronteira argentina. Quatro mulheres atravessando o estado sem ter muita perspectiva de que o lado de lá estará melhor – ainda assim, a jornada segue.
Essa pequena comunidade de refugiados climáticos, rumando através de um cenário devastado pelo clima e pelo abandono, produz uma imagem potente sobre as verdadeiras implicações do que é, ou será, viver sob as ruínas. Os ecos que mantêm com a literatura brasileira da seca são evidentes, pois trata-se em algum nível de inventar uma nova forma de sobreviver. Mas a comunidade de três lésbicas e uma mulher trans construída por Polesso não abdica da reinvenção também afetiva que está implicada no ato de sobreviver. Quando chegam a um refúgio, já do lado da Argentina, as quatro se permitem tomar um banho de lago, e ali experimentam um tipo de experiência coletiva, atravessada por ternura e beleza, que é um reflexo dessa reconstrução absolutamente nova do que é uma ecologia subjetiva. Ao mesmo tempo, quando se perguntam por que não podem ficar naquele refúgio para sempre, reconstruindo suas existências naquele lugar, as realidades intervêm de forma violenta: todo o refúgio é temporário.
Ainda mais radical, em sua relação com a ficção científica, é a novela Bugônia, de Daniel Galera, do livro O deus das avencas (Companhia das Letras, 2021). Na história, que se passa em um futuro posterior a uma catástrofe ambiental, acompanhamos a vida de uma comunidade chamada Organismo. Os 78 habitantes da comunidade, que habita o topo de um morro, bastante isolada de suas cercanias, sobrevivem numa espécie de comuna rural. A sobrevivência dessa comunidade, em comparação com o que parece ser um mundo devastado, se dá muito em função da descoberta de um tipo de antibiótico produzido a partir do mel de abelhas que se alimentam de cadáveres, o necromel. Essa substância parece tornar imunes os habitantes do Organismo contra alguma doença misteriosa responsável por aniquilar boa parte da população.
O que parece ser um povoado relativamente utópico em meio às ruínas de um mundo destruído, não é imune aos conflitos. Internamente, uma disputa se estabelece. Por um lado a matriarca da comunidade, A Velha, estabelece as bases da convivência: é preciso viver o momento, construir alianças com todas as espécies, não deixar qualquer tipo de conhecimento acerca do passado atrapalhar o desenvolvimento desse povoado isolado. Por outro lado há Alfredo, que insiste na validade da memória, dos livros, do conhecimento do passado. Entre ambos, a protagonista Chama, uma garota que tem afinidade surpreendente com as abelhas que produzem o mel que sustenta sua comunidade. Não bastasse a tensão crescente do conflito interno sobre os rumos da comunidade, há também um grupo de pessoas chamado de caravana dos carvoeiros, espécie de gangue estilo Mad Max que ronda as cercanias do Organismo, numa sanha de extinção do planeta e de toda a população.
Em determinado momento da narrativa, um acontecimento muda tudo de rumo: os habitantes do Organismo são acordados por um ruído e, numa clareira próxima, testemunham a queda de uma nave, com seu astronauta quase morto após a queda.
A queda do astronauta nos posiciona em uma nova perspectiva. O que aparentemente é um colapso generalizado do planeta e dos humanos é reconfigurado como um colapso para poucos. Somos informados, pela queda da nave, que talvez antes da catástrofe se abater sobre nós, alguns tinham os recursos para fugir. O Organismo não é apenas uma comunidade de sobreviventes, mas também uma comunidade daqueles que foram deixados para trás. O interessante no conto de Galera é como aqueles que foram os responsáveis por colapsar o planeta ‒ ou seja, aqueles que extraíram e acumularam todo os recursos, tornando o mundo inabitável para grande parte de suas espécies e o abandonaram seduzidos pela ideia de um “planeta B” ‒ descobriram da maneira mais violenta possível que não há alternativa. Todas as alianças precárias que os habitantes do Organismo constituem, por mais frágeis e delicadas que sejam, são impossíveis de constituir em qualquer outro lugar. Como diria A Velha, são nossas alianças que nos tornam quem somos, algo que as elites endinheiradas do capitalismo parecem ter esquecido.
A disputa entre começar uma vida desconectada de um passado de extinção e violência, uma espécie de começo do zero propagado pela Velha, em oposição a tentativa de construir uma forma de sobreviver consciente dos erros e catástrofes do passado, parece se tornar ainda mais complexa com a aterrisagem do astronauta. Ele carrega em si todas as ilusões de um desprendimento, ou de uma autonomia, em relação ao ambiente, a própria narrativa triunfalista dos humanos que conseguem dominar e superar os ambientes em que estão colocados. Isso pode ser perigoso para uma comunidade construída na ideia de que era preciso deixar essas ilusões para trás. Mas, assim como a Terra parece ser um atrator, que puxa o astronauta de volta para ela, também o são as memórias e heranças que precisamos em determinado momento enfrentar. Além disso, a caravana dos carvoeiros também se aproxima e a última esperança do Organismo reside nas frágeis alianças que Chama foi capaz de estabelecer com as abelhas.
Tanto Bugônia quanto A extinção das abelhas elencam uma série de desafios que se impõem para a vida nas ruínas que se avizinha. Suas formas de elaboração, que mantêm esses insetos como símbolo de união, nos coloca perante o problema inescapável de aprender a viver em um planeta cada vez mais hostil ao modo como nos acostumamos a habitá-lo. A criação de comunidades afetivas, a herança de nosso passado individual e coletivo, a capacidade de produzir alianças, ainda que frágeis e temporárias. Essas imagens produzidas parecem indicar um caminho, ou pelo menos uma perspectiva, para aqueles que também foram deixados para trás.
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Fez bem em republicar! Excelente esse texto