Continente de espectros: política e fantasmagoria
Em que se discute o giro sobrenatural da memória em alguma ficção latino-americana e a invocação de aparições contra o desaparecimento
1.
No texto anterior da Espeluznante, discuti algumas impressões acerca da literatura de horror latino-americana contemporânea, ainda de um ponto de vista abstrato e genérico. Aqui, vou tentar mapear alguns exemplos de como esses textos operam a partir da atualização e politização de uma figura clássica do horror: o fantasma. Haveria muito a dizer sobre como os espectros, espíritos e assombrações fazem parte de um tecido muito amplo da cultura latino-americana, mas tentarei focar na sua dimensão propriamente literária, em especial quando é usada em narrativas de horror. Pois o fantasma pode ser entendido como uma espécie de paradigma da literatura de horror moderna (remontando desde o gótico e o romantismo do séc. XVIII até suas atualizações na literatura sobrenatural anglófona do início do séc. XX, com M. R. James) e também como um exemplo recorrente do próprio funcionamento do que entendemos como fantástico. O fantasma é aquela entidade sobrenatural cuja mera aparição desarranja a “ordem natural” das coisas. O que é interessante no fantasma é que ele aparece como acontecimento, um evento específico, uma aparição. Depois de ter aparecido pela primeira vez, o mundo já não é mais o mesmo. É uma figura que ultrapassa fronteiras entre o vivo e o morto, o nosso mundo e o além, o natural e o sobrenatural, desarranjando aquilo que concebemos coletivamente como a nossa realidade, onde tais fronteiras não se cruzam. Por isso o medo do fantasma. É o medo de que aquilo que tomamos como estável e definitivo, como a morte, pode ser desfazer a qualquer momento.
Por outro lado, o fantasma também é um personagem que ultrapassa uma fronteira temporal. Como se diz em francês, revenant, o fantasma é um retornante, vem de um passado, que se acreditava concluído e deixado para trás, para agir no presente. Ele expressa uma disjunção na ordem cronológica, um vínculo ou uma copresença entre passado e futuro. Mas esse vínculo muitas vezes é motivado por uma necessidade, uma espécie de inconclusão violenta desse passado que demanda fechamento: um trauma, uma violência, uma injustiça. De certa forma, o fantasma funciona de maneira muito correlata a nossa memória: somos assombrados por eventos passados, muitas vezes aqueles que não gostaríamos de lembrar. Talvez para a literatura de horror latino-americana, o fantasma funcione como um tipo especial de memória, uma forma específica e sobrenatural de lidar com um passado traumático, violento, inconcluso.
Desde o início dos anos 2000, um conjunto de críticos e teóricos apontam uma tendência dentro da literatura latino-americana em lidar diretamente com questões relativas ao passado e à memória. Beatriz Sarlo, por exemplo, em seu livro Tempo passado, argumenta que essa obsessão com a memória, em especial no Cone Sul, tem a ver com um tipo de experiência marcada pelas violências das ditaduras militares que assolaram esses países ao longo das décadas de 60, 70 e 80. Haveria quase um ímpeto coletivo em não apenas lembrar mas também narrar o que se passou, numa luta contra o esquecimento dessa violência coletiva. Entretanto, e aqui a questão se torna curiosa, não se trata apenas de um tipo de literatura voltada ao testemunho, ao registro ou à denúncia das dinâmicas do poder ditatorial. Esses autores-memorialistas eram jovens demais para terem sofrido a experiência da ditadura diretamente, e acabam fazendo uma literatura baseada numa espécie de memória em segundo grau. Discutem a história do país a partir de uma construção do passado que não é direta, mas que se baseia num tipo de dispositivo de pós-memória, como chamaria a crítica Marianne Hirsch, falando da geração de escritores judeus posteriores ao Holocausto: um relato das memórias daqueles que viveram o evento traumático, uma elaboração ficcional sobre a memória dos outros. Nas palavras de Sarlo, “a memória da geração seguinte a que padeceu ou protagonizou os acontecimentos seria a memória ‘dos filhos’ sobre a memória ‘dos pais’”.
Chamada de “geração dos filhos” pela crítica literária latino-americana (e de Nova Narrativa Argentina, no caso específico da Argentina, por Elsa Drucaroff), tais autores e autoras tratam da memória de um ponto de vista especulativo, ficcional, imaginário: trata-se de “preencher” as lacunas da experiência para dar conta de um trauma vivido em segunda mão. Por serem crianças (ou por nem sequer terem nascido ainda), os relatos de violência ou mesmo a experiência de um terrorismo de estado parece incompreensível, mas diferente da incompreensibilidade tradicional de um trauma. A experiência não é de um clima de perseguição política e iminente prisão ou tortura, mas sim de que há algo inexplicável que apavora a todos. A literatura da pós-memória, portanto, não trata de uma reconstrução fidedigna de um passado, mas elabora uma versão fabulatória, construída a partir de estilhaços de lembranças, dos restos de uma violência traumática que não foi vivida como aqueles que a sofreram diretamente mas que contribui de maneira irreversível àqueles filhos dessa geração. É uma herança de trauma, violência e perseguição, que precisa ser endereçado.
Acho que a literatura de horror contemporânea produzida na América Latina pode ser entendida como um tipo de giro sobrenatural da pós-memória. De certa forma, há um tipo de elaboração especulativa da memória e da história latino-americanas através de figuras advindas do fantástico e do horror. O fantasma, nesse sentido, acaba sendo uma figura bastante privilegiada, pois não apenas aparece como um dos personagens paradigmáticos desse tipo de literatura, como também é essencialmente temporal, memorialístico. Há algo no fantasma que evoca um passado no presente. Como diz Derrida, em seu Espectros de Marx, o fantasma ou espectro promove uma espécie de disjunção temporal, ele expressa uma não contemporaneidade do presente em relação a si mesmo promovido pelo trauma, um passado que não se deixa esquecer. O presente é constantemente visitado pelo passado por meio da figura do fantasma, que retorna com alguma demanda: no caso da literatura contemporânea, parece que somos assombrados pelo trauma da violência política. O que é característico do fantasma é que ele não é puramente uma lembrança: ele é um agente, age concretamente no presente. Não aparece como algo que passou, mas como o rastro de algo passado que segue acontecendo. Há, no fantasma, uma espécie de política sobrenatural da memória entendida como horror, mas também da herança, da justiça e da responsabilidade com aqueles que, apesar de não mais presentes, assombram a ordem tranquilizadora de nossas vidas.
Há algo na violência política, como a das ditaduras latino-americanas, que constitui uma espécie de trauma coletivo, que envolve aqueles diretamente afetados pelo terrorismo de estado, mas também se costura intimamente na construção de um país. Os filhos dos perseguidos políticos herdam um trauma, que por não ter sido vivido de maneira concreta, precisa ser elaborado de alguma forma. O giro sobrenatural, ou a utilização do fantasma como figura do trauma coletivo, é uma forma pela qual alguns textos de horror contemporâneo se utilizam para elaborar essa memória em segundo grau. Para além da homologia entre fantasma e memória, há uma semelhança importante entre a estrutura do trauma psíquico, coletivo ou individual, e a estrutura da literatura fantástica: um acontecimento marcante e violento que irrompe a partir do cotidiano, cujos efeitos são dificilmente compreendidos para além das marcas que deixam.
Utilizamos no texto anterior o conto Quando falávamos com os mortos, de Mariana Enríquez, como um exemplo da operação de denatrualizar o real através do fantástico, mas aqui ele se torna ainda mais importante, pois sintetiza um tipo de relação literária com o fantasma e a memória. Quando as adolescentes se juntam para realizar suas brincadeiras de Ouija, não tarda para que logo comecem a lembrar daqueles que foram vítimas das ditaduras militares. As adolescentes sabem o que aconteceu, viram filmes como “A noite dos lápis”, conhecem os relatórios do Nunca Más, observam os protestos e julgamentos de acusação da ditadura militar no país. Entretanto, há um desejo dessas garotas de não apenas tomar consciência dos horrores do terrorismo de estado pelos relatos de outrem, mas também de agir em relação a eles. Sabem que são herdeiras dessa violência, ainda que não tenham total consciência de sua dimensão. E, assim como qualquer herança, precisam se apropriar dela, mexer nos inventários e arquivos, abrir o caminho para o passado. Por isso, decidem invocar os fantasmas de seus conhecidos, sejam eles seus próprios pais, parentes distantes, amigos de família.
Mariana aqui faz uso de um gesto metaliterário, que figurativiza o giro sobrenatural da pós-memória: os filhos da geração que foi violentada pela ditadura invocando os fantasmas como forma de reativar esse passado em seu próprio presente. Cinco adolescentes em torno da tábua de Ouija é uma imagem potente para a literatura de horror latino-americana contemporânea: a literatura como dispositivo de invocar os fantasmas de nossa história. Desnaturalizar o real através do fantástico, usar da literatura de horror para elaborar a verdadeira dimensão do horror da nossa história.
Apesar de serem conscientes das ausências e violências produzidas pela ditadura, há um nível mais aterrorizante em jogo ali: elas se sentem provocadas. Há uma curiosidade, um fascínio. Por mais que saibam quem são, saibam o que se passou no plano dos fatos, elas querem mais: querem falar com os fantasmas, querem ser visitadas por eles. Querem tornar esses desaparecidos os seus desaparecidos. É preciso uma certa irresponsabilidade calculada, uma coragem possuída só por quem não viveu diretamente esses horrores de abrir os arquivos e deixar os fantasmas falarem. O que é curioso, e um certo comentário irônico de Mariana, é que dentre as garotas que fazem a invocação, apenas uma delas não possui uma ligação direta com alguma vítima da ditadura. E é precisamente essa garota que é obrigada pelos próprios espíritos a abandonar a sala de invocação.
Quando os fantasmas aparecem de fato, respondendo ao chamado, eles têm uma característica importante, estão confusos. Em suas comunicações eles afirmam que sabem que foram presos, sabem que foram torturados, mas não sabem muito mais de sua própria condição. Não sabem nem se estão de fato mortos ou não.
El problema era otro: nos costaba hablar con los muertos que queríamos. Daban muchas vueltas, les costaba decidirse por el sí o por el no, y siempre llegaban al mismo lugar: nos contaban dónde habían estado secuestrados y ahí se quedaban, no nos podían decir si los habían matado ahí o si se los llevaron a algún otro lugar, nada.
Para além da mera aparição dos fantasmas como evento sobrenatural, há algo a mais no conto de Mariana. Não se trata de qualquer fantasma, mas de fantasmas que, a partir de sua individualidade, expressam uma condição coletiva: o fato de nem saberem que estão mortos. Isso é uma característica transversal do fantasma como um todo, pois assim como estão entre o passado e o presente, eles também estão entre a vida e a morte. Não mais existem “em carne e osso”, mas nem por isso deixam de agir no presente. Foram assassinados, violentados, enterrados. Entretanto, se fazem presentes através de uma aparição. Como afirma Derrida, a questão dos espectros é sempre a questão dos limites entre os vivos e os mortos, onde quer que se apresente. Esses limites entre vivos e mortos, entre o nosso mundo e o além, entre aqueles que estão presentes e os que estão ausentes parece ser fundamental para tratar da violência política – e em especial a das ditaduras latino-americanas. Pois os fantasmas invocados por Mariana são fantasmas que duvidam de sua própria condição espectral por terem tido o seu direito à morte negado. Ficam num limbo pois não tem sua própria posição ontológica definida: são desaparecidos.
A técnica do desaparecimento de presos políticos foi uma das características mais marcantes das ditaduras latino-americanas. A criação de centros clandestinos de detenção e tortura, junto aos dispositivos de assassinato e desaparecimento de militantes e opositores dos governos militares, produziu uma espécie de máquina governamental anônima que operava visando eliminação de qualquer traço de dissidência. E não apenas do ponto de vista do extermínio da dissidência, mas em especial a sua desaparição. Os perseguidos pelos governos militares não eram nem reconhecidos como presos, capturados ou assassinados: tinham a sua existência negada pois apenas desapareciam. Eram condenados a uma existência espectral, nem vivos e nem mortos. Não havia qualquer registro de seu sumiço e, por conseguinte, de sua existência. Era uma existência marcada pela própria definição de Derrida acerca do espectro: eram a presença de uma ausência. Mariana Enríquez, inclusive, alude a isso quando diz, em entrevista, que a ditadura militar “creó fantasmas como política de Estado”.
Já peço perdão pela citação, mas há uma fala do ditador e genocida Jorge Videla que deixa bem clara essa conexão entre os espectros e os desaparecidos:
Os desaparecidos são uma incógnita. Se reaparecessem, receberiam um tratamento X, e se o seu desaparecimento se tornasse definitivo com a certeza de sua morte eles receberiam o tratamento Y. Mas enquanto estão desaparecidos, eles não podem ter nenhum tratamento especial, são entidades desconhecidas, nem mortos nem vivos, estão desaparecidos.
A produção dessas “existências espectrais” é uma técnica dos regimes militares latino-americanos. Há esse dispositivo repressivo e assassino, de efetivo extermínio de qualquer dissidência – seja dos militantes, seja dos trabalhadores – que age diretamente sobre os corpos, através da prisão, da tortura, do assassinato e do desaparecimento. Mas há também uma contraparte dessa técnica, que age diretamente sobre o discurso público, que é a produção dessa indecidibilidade acerca dos desaparecidos. Como Videla deixa bastante claro, não basta apenas assassinar, é preciso apagar o rastro do assassinato para que o processo de elaboração dele seja interrompido. Fábio Luis Franco, de quem estamos tomando diversas ideias aqui, afirma que trata-se de uma gestão política do luto, de uma interrupção no processo de reconhecimento da morte, e subsequentemente de suas consequências: justiça, reparação, resistência.
A negação do luto faz com que a resistência política entre em um processo estanque. Não há acusação pois não há crime. O Estado, ao fazer desaparecer, também se furta ele próprio da responsabilização. Se por um lado ele produz existências espectrais, pessoas presas em um limbo entre vida e morte condenadas a uma suspensão eterna, o Estado ditatorial ele próprio se fantasmagoriza. Pela natureza das técnicas de desaparecimento, todas elas clandestinas e cuidadosamente anônimas, a presença do regime se torna uma ausência. Há todo um jogo fantasmagórico entre um regime que produz espectros a partir de sua própria espectralização. Há uma política do horror, do não dito, da perseguição e da assombração. O terrorismo de Estado, ao se espectralizar, acaba virando um correlato de uma história de terror.
Mas o que é importante reter aqui também, e esse talvez seja o grande gesto de crueldade da técnica do desaparecimento, é que ao negar a existência de uma morte também se produz a negação daquela vida assassinada. Não permitir que o luto se instaure, do ponto de vista individual ou coletivo, também diz muito acerca das vidas que importam, que merecem ser registradas, que merecem ser choradas. Ao negar um ritual fúnebre, parece que os desaparecidos não merecem nem figurar no discurso público como mortos. Isso diz respeito a uma questão de construção de um país: o inventário dos mortos, de seus nomes, de sua história, de sua individualidade, é diretamente relacionado ao modo como nos entendemos coletivamente, como nação. Como diz Fábio Luis Franco,
Assassinar já não basta. É preciso um esforço a mais se quisermos fazer uma nação: tornar indizível, invisível, irreal, não passível de luto – enfim, é preciso desaparecer com algumas mortes para desaparecer com algumas vidas. São nomes, histórias de lutas, narrativas de sofrimento, de resistências, que desaparecem nas elipses do discurso social.
Por isso, a questão do retorno e da assombração: parece que não podemos abandonar nossos mortos, não podemos fazê-los descansar, pois nem a sua morte é coletivamente reconhecida. Talvez nesse sentido é que observamos um ímpeto de fazer os fantasmas retornarem para assombrar o presente. Se já estão condenados a uma existência espectral como desaparecidos, é preciso convocá-los tal como estão: como fantasmas. No conto de Mariana Enriquez, esse jogo é muito bem disposto, entre o luto individual e o luto coletivo. Ainda que estejamos falando dos “nossos” desaparecidos, de nossas perdas individuais, falamos também que nenhum desaparecido pode vir sozinho. O trauma da perda de um amigo ou familiar traz consigo uma legião de fantasmas, que foram produzidos pelo mesmo regime. Quando um fantasma fala ou aparece, ele afirma não apenas que morreu vítima de um dispositivo repressivo estatal, mas também valida a sua própria existência. Por isso Derrida afirma que, para se pensar em uma política da justiça e da reparação, é preciso falar do fantasma, ao fantasma e com o fantasma.
Essa figura do desaparecido e da negação de uma morte carrega em si um paralelo com a história da América Latina como um todo. Pois a nossa história, nosso arquivo do passado, é marcado por apagamentos sucessivos. O processo de colonização é a imposição de uma história que começa do zero, de um “descobrimento” que para se justificar precisa apagar todos os indícios do que veio antes. Assim como no caso dos desaparecidos, não temos o corpo do morto, temos apenas a presença de uma ausência: uma existência propriamente espectral. Não temos os conteúdos dos apagamentos produzidos pelo processo de colonização, temos apenas o rastro desse apagamento, o registro preciso de uma ausência, um lugar vazio, que não cessa de nos assombrar. Essa figura do fantasma, desse que está sempre retornando como que para fazer justiça, encontra no território da América Latina um solo fértil: um verdadeiro continente de espectros.
Entretanto, o apagamento nunca é total. Assim como há os arquivos subterrâneos, há os dispositivos de produção de uma memória coletiva, da invocação dos fantasmas. Há sempre um rastro, ainda que o rastro seja o indício de que algo foi apagado. A ausência do desaparecido é o testemunho de sua presença em algum momento. É a própria ausência que serve de marcador ou registro de uma presença não mais presente. Esse arquivo espectral, ou o trabalho que o fantasma pode fazer, é uma resistência contra essa ânsia de apagamento e desaparecimento que caracteriza os regimes políticos que regem a América Latina desde a época da Conquista. Se por um lado há a tentativa de supressão e exclusão, de negação de uma existência, sua contraparte é o retorno violento dos espectros, um levante dos fantasmas.
Contra as técnicas do desaparecimento, as táticas de convocar aparições. Em oposição ao terrorismo de Estado, o terror pela literatura. O conto de Mariana é preciso nesse sentido pois dramatiza uma operação fundamental quando falamos de fantasmas: é preciso invocá-los, chamá-los, convidá-los a voltar. Fazer da ausência uma visibilidade, a literatura como uma sessão de invocação para dar materialidade espectral aos fantasmas que nos assombram. Da mesma forma como há uma espécie de feitiço de desaparição da morte e dos adversários políticos, há o contrafeitiço de fazê-los retornar. Se o fantasma é uma espécie de personagem que surge a partir da perda do vínculo entre um passado e um presente, vemos como as ditaduras e a colonização são políticas que motivam o desfazimento desse vínculo. Perdemos nosso passado, ele foi apagado propositalmente. Invocar os fantasmas é fazê-lo retornar aqui, vingar o seu apagamento.
A intervenção espectral no presente, uma aparição súbita de um fantasma que foi convocado, é uma figuração clássica da forma de funcionamento da literatura fantástica, nos termos que estávamos discutindo. Entretanto, enquanto nessa acepção mais tradicional do fantástico efeito estético desejado é a própria aparição, como evento que perturba a ordem natural das coisas, na literatura de horror contemporânea há ainda um trabalho a ser feito. A aparição é apenas metade do caminho, ainda resta perguntar: qual a natureza dessa aparição? Que trabalho esse fantasma está fazendo? Quem o convida, quem o recebe, como o recebe? É preciso prestar atenção, se levarmos em consideração essa dimensão própria da literatura de horror contemporânea de vínculo com o documental, que tipo de trabalho está sendo feito por cada um dos fantasmas que irrompem nas narrativas.
2.
O filme La Llorona (Guatemala, 2019), de Jayro Bustamante, é uma narrativa costurada por diferentes rituais e formas de invocar os fantasmas. O filme é baseado em um julgamento, ocorrido em 2013, onde o ex-ditador guatemalteco Efraím Ríos Montt foi condenado por genocídio, perpetrado durante o seu regime, que matou mais de 200 mil pessoas e produziu mais de 45 mil desaparecidos; desses, 83% eram indígenas do povo maia-ixil. No filme, temos uma ficcionalização desse julgamento, que acompanha um ditador no processo imediatamente posterior a sua condenação, que passa a ser assombrado por uma visitante espectral. O filme opera nesse registro da desnaturalização do real a partir do fantástico, como discutimos no texto anterior.
É interessante como o próprio julgamento parece ser uma espécie de ritual de convocação dos fantasmas. Uma das primeiras cenas do filme é precisamente uma indígena relatando a forma pela qual o exército guatemalteco assassinava populações inteiras no interior do país, dos idosos às crianças sem distinção. Esse relato, que ecoa aquilo que Mariana Enriquez comentava acerca dos relatos dos torturados na Argentina, é mostrado no filme na própria língua maia, com um tom de voz estrangeiro e monótono, soando como se fossem as palavras de um feitiço, um convite aos mortos e desaparecidos a retornarem.
Após o julgamento, o general (cuja condenação é logo revertida por particularidades jurídicas) passa a ser visitado por uma figura espectral. Ouve lamentos perdidos pela casa e sons de água correndo, e aos poucos vai perdendo sua sanidade. À medida que tais assombrações se tornam constantes na casa da família, os funcionários de origem indígena se demitem, pois não querem estar presentes em uma casa claramente assombrada. Por isso, uma nova funcionária é contratada, com o nome sugestivo de Alma, uma mulher de cabelos longos e vestido branco de algodão, que parece estar em sintonia com o que assombra aquela casa.
O que é singular no filme de Bustamante é como ele consegue costurar na figura desse fantasma que passa a habitar a casa do ditador um conjunto distinto de ordens de assombração. Pois Alma não é uma aparição etérea, que é vista apenas por aqueles assombrados por ela. É uma presença de carne e osso, viva para todos os critérios, que circula pela casa e interage com todos os seus moradores. Entretanto, Alma também é o fantasma de uma mãe que teve seus dois filhos afogados e depois foi assassinada pela mão do próprio ditador. Por fim, Alma também é La Llorona, uma lenda popular própria da América Hispânica, que tem diferentes manifestações e formas de aparecer nos diferentes países do continente. De maneira bastante geral, trata-se do espírito de uma mulher violentada, que perdeu seus filhos em uma determinada situação de injustiça, e fica eternamente vagando e chorando por eles.
Há, aqui, uma dimensão muito forte da forma pela qual o trauma pode ser encarnado na personagem de Alma. Por um lado, ela é a personalização de um trauma coletivo, o genocídio promovido pela ditadura, como um caso representativo. É ela o fantasma convocado, que retorna como uma figura de justiça e reparação. Ela foi assassinada, seus filhos foram assassinados, e sua vingança é assombrar o general a partir da invocação pelo julgamento entendido como ritual, como a ativação da memória espectral. Por outro lado, Alma não é uma figura do passado: ela é também uma mulher indígena, deslocada para os centros urbanos da Guatemala para trabalhar em casas de famílias burguesas, situação que demonstra de maneira efetiva as disparidades de classe que são presentes e contemporâneas nos países da América Latina. Alma assombra como fantasma concreto de um genocídio, mas assombra também como descendente dos assassinados, é o retorno da ditadura mas também a presença concreta das operações do capital em países latino-americanos. Essa dupla face de Alma, fantasma de um passado recente violento e de um presente cruel, se torna ainda mais complexa quando também evoca a figura da Llorona como um mito ameríndio. Assim como é um passado recente, também é um passado ancestral, uma figura mitológica que é atualizada e se faz presente.
Há toda uma tradição na literatura latino-americana de atualizar essas figuras mitológicas pré-hispânicas como personagens fantásticos, dentro do terror. Podemos pensar em dois exemplos representativos, como Chac Mool, de Carlos Fuentes, onde um deus asteca é revivido num México contemporâneo, ou A noite de barriga pra cima, de Julio Cortázar. Esse dispositivo, chamado por alguns pesquisadores de gótico mítico ameríndio pré-hispânico, funciona como uma crítica dos procedimentos de invisibilização da história latino-americana, e como a irrupção de tais figuras pode causar horror aos modernos habitantes da América Latina. Esses mitos funcionam em uma lógica espectral pois fazem parte desses arquivos apagados de nossa história pré-colombiana. Não apenas as pessoas assassinadas podem nos assombrar, mas também os deuses e espíritos apagados pelos processos de colonização, mas que insistem em nos rondar. Nada está permanentemente apagado, tudo pode retornar.
O que é interessante do ponto de vista estrutural no filme de Bustamante é que ele atualiza o dispositivo do fantástico, colocando-o de cabeça para baixo. Se há uma vertente da crítica que afirma o fantástico como o espaço da dúvida, se uma determinada aparição é fruto de uma alucinação ou de um evento sobrenatural, Bustamante desloca essa questão da dúvida para a questão da indecidibilidade. Não se pergunta se Alma é um fantasma, uma funcionária ou a atualização de um mito ameríndio. Ela é, concretamente, as três coisas. Ela não pode ser reduzida a nenhuma dessas dimensões, opera numa lógica do “e”. Fantasma e funcionária e mito. Cada uma dessas dimensões polimorfas da assombração realiza um tipo de trabalho, produz um tipo de efeito narrativo.
O fato de Alma ser um tipo de visita indesejada faz com que o filme também trabalhe com um tipo de ritual específico, que são os rituais de banimento ou de exorcismo. Se, por um lado, o julgamento serve para invocar os fantasmas, como uma espécie de feitiço maia pronunciado em tom de invocação, também vemos na primeira cena do filme uma oração cristã que apela pela proteção contra os espíritos. A esposa do general com outras mulheres faz uma espécie de novena em círculo, pedindo proteção contra aqueles que se opõem a nós. O fato de estarem em uma posição que relembra muito uma séance de convocação de espíritos é o que chama a nossa atenção. Ao contrário do julgamento, estamos diante de um ritual de banimento, para evitar que os espectros retornem. O fato de ser um ritual cristão ressoa diretamente com os processos da colonização e do chamado “desencantamento do mundo”, onde a magia e o culto a entidades não europeias foram violentados também do ponto de vista espiritual.
É nessa chave que podemos entender também um diálogo importante do filme. A esposa do general conversa com sua filha logo após o julgamento, que parece estar concordando com a condenação de seu pai. A mãe automaticamente a censura, perguntando se virou uma comunista, e fala: “Para que o país avance é preciso ir adiante. O que ficou para trás, está atrás”. Tomar o tempo como uma marcha que sempre avança, condenando o passado como algo que invariavelmente se passou e não mais retorna é uma compreensão oposta a lógica espectral, em que o passado está sempre prestes a romper no presente. Há uma disputa de temporalidades em La Llorona, onde o tempo do progresso, da marcha que sempre avança, é bloqueada pelos fantasmas que insistem em demonstrar ou tornar visível que o que ficou pra trás está sempre retornando. O progresso não apenas serve para justificar violências feitas no presente em nome de um futuro, mas também para apagar as violências do passado.
É por isso que há nas narrativas da América Latina quase um grito pela presentificação do passado. Não de um ponto de vista nostálgico, ou ressentido, como certas vertentes de uma assombrologia de origem inglesa postulam. Pelo contrário, uma espectropoética latino-americana precisa invocar os fantasmas como forma de delinear o seu próprio presente. Não se trata de uma mera lembrança, ou recordação de um tempo que já passou, mas da presença concreta daqueles que servem de fundamento para o estado de coisas do presente. Como vemos em outros dos rituais que são retratados pelo filme, nos protestos que são organizados em volta da casa do ditador, as fotos dos desaparecidos que estampam os cartazes aos poucos vão se materializando. Os próprios desaparecidos começam a encarnar, e se tornam eles próprios manifestantes, encorpando a massa dos protestos. Por mais que a política de estado das ditaduras latino-americanas se esforce para produzir ausências, elas próprias se fazem como presenças fantasmais.
Do ponto de vista do general, esses retornos parecem ser maldições. Em determinado momento, ele move sua cama para revelar um mofo que deteriora a parede de seu quarto. Para ele, trata-se de um indício de que foi amaldiçoado, que um feitiço realizado contra ele finalmente o alcançou. A maldição também segue uma lógica espectral, de um passado que alcança o presente de forma violenta. Por isso também as tentativas sucessivas de exorcismo, como falamos mais cedo. É preciso ou banir os espectros de retornarem, ou tentar mandá-los de volta de onde saíram. O exorcismo diz respeito a esse medo não apenas de ser assombrado por fantasmas, mas também de ser por eles possuído, ser tomado por um espírito visitante que não é necessariamente amigo. Fatalmente, é o que ocorre no clímax do filme. Por mais que a família tente barrar o recebimento dos fantasmas, apelando até mesmo a um ritual maia, parece que mais os chamam. Ao fim do filme, o espírito de Alma/Llorona acaba por possuir de vez a esposa do general, que não apenas vive o assassinato de Alma e de seus filhos no passado, como se torna ela própria o veículo final da vingança: acaba matando seu marido.
La Llorona demonstra como pensar uma política latino-americana com fantasmas dentro. Trata dessa disjunção temporal, da perda de vínculo entre o passado e o presente promovida por uma política de estado. Mesmo que trate de um regime em específico, demonstra como essa disjunção é promovida desde o processo da colonização. E mais do que isso, como demonstra a autora Liliana Colanzi no conto Chaco, é um processo que segue ocorrendo. O discurso de que o passado não volta, é também o mesmo discurso que permite que pensemos que os genocídios, as explorações, os regimes autoritários e o terrorismo como política de Estado são coisas que já passaram, não dizem mais respeito ao nosso presente. Chamar os fantasmas é também demonstrar como eles dizem respeito ao nosso aqui-agora.
3.
Em La Llorona, os fantasmas são tomados em sua dimensão temporal, como veículos de justiça, reparação e também vingança. Mas o fantasma também pode ser entendido em sua dimensão propriamente espacial, e também como uma espécie de retorno de uma dinâmica opressiva, da persistência da violência.
Se falamos aqui em fantasmas da América Latina, estamos falando também de uma geografia fantasmática, um continente de espectros. Pois, em uma fórmula ramiliana, se os fantasmas estão soltos no tempo, eles estão presos ao espaço. Os fantasmas muitas vezes são aterrados nos locais que sofreram suas violências, assombram os locais específicos de suas mortes, mantêm uma relação com a terra. Muitos dos tropos clássicos da história de fantasma operam dessa forma, através da casa assombrada, do cemitério, de um campo de batalha ancestral. Assim como se encarnam em objetos, nos arquivos que testemunham a persistência de seus rastros, também se encarnam nas paisagens. Toda cidade é em algum sentido assombrada pela violência.
No conto A casa de Adela, de Mariana Enriquez, vemos um tipo de assombração espacial desse tipo. Adela e Pablo, alimentados por uma dieta constante de filmes de horror, ficam obcecados por uma casa abandonada no bairro onde moram, em Buenos Aires. A casa abandonada, com suas janelas tapadas por tábuas de madeira, seu portão enferrujado, o gramado mal cuidado, parece ser saída diretamente de um clássico do horror dos anos 80. Enquanto contam as histórias dos filmes para as crianças mais jovens, que tem medo de assisti-los diretamente, aos poucos começam a contar histórias da própria casa. Quem morava ali, por que está abandonada, o que faz com que sejam atraídos por ela. Aos poucos, não falam mais dos filmes; só falam da casa. Recontam as informações coletadas nas bancas de jornais, com os vizinhos, com seus pais. É inevitável que chegue o dia em que irão adentrar a casa, e fatalmente o fazem. A casa, tal como uma casa assombrada clássica, parece muito maior por dentro que por fora. Tem cômodos que parecem não ter fim, portas que abrem a outras portas. Em uma sala, prateleiras que vão até o teto com jarros cheios de unhas e dentes humanos. Um zumbido, quase um lamento, os acompanha enquanto exploram essa anormalidade espaço-temporal. Subitamente, as luzes se apagam e todos ficam perdidos. Ao tentar fugir, Adela adentra uma porta e nunca mais é vista, é tragada pela casa. Quando a polícia entra na casa, não há nada lá dentro: nem paredes, nem portas, nem prateleiras com unhas. Adela simplesmente desapareceu.
Sabe-se como as ditaduras latino-americanas usavam de casas civis em bairros de classe média como locais de tortura. A ética burguesa de jamais se meter nos assuntos privados dos vizinhos servia como a cobertura perfeita para os gritos de tormento dos torturados. Havia um acordo coletivo que resguardava para o âmbito do privado o terrorismo político. Essas casas se multiplicam pelos subúrbios de grandes cidades da América do Sul, e são assombradas por esse trauma. Parecem ter se tornado objetos que não tem outro propósito que não promover o desaparecimento. Como diz Mariana Enriquez no conto, “Nunca a encontraram. Nem viva, nem morta”. Adela é vítima de uma maldição, que foi lançada materialmente sobre aquela casa. A casa dos desaparecidos, assombrada pelos algozes, cria mais uma existência espectral, mais um fantasma que irá assombrar uma rua pacata no subúrbio de Buenos Aires.
Mas há um gesto importante aqui, relacionado à preservação da memória. Após o desaparecimento de Adela, a população decide fazer uma intervenção na casa: escreve em sua fachada os dizeres “onde está Adela?”. Esse gesto é fundamental, pois se constitui como uma espécie de resistência contra a maldição da casa. Em vez de estar apenas amaldiçoada pela ditadura, a pichação serve como uma invocação também do fantasma das vítimas. A casa agora não está apenas amaldiçoada pela ditadura, mas também assombrada pela memória das vítimas. A casa de Adela, que antes também fez tantos outros desaparecerem, mantém-se como um arquivo aberto da violência política no centro da cidade, para todos verem e não se esquecerem. Mariana Enríquez aqui se apropria de casos reais, nessa dimensão documental que estamos falando sobre o horror contemporâneo: são comuns em Buenos Aires antigas casas de tortura que ficam em bairros residenciais, e invariavelmente tais casas possuem diversas pichações em suas fachadas, perguntando o que se passava ali, onde estão os desaparecidos, clamando por justiça.
Um caso recente. Na cidade de Porto Alegre, em um de seus bairros mais célebres, havia uma conhecida casa de torturas, chamada de Dopinha. Ali, prisioneiros da ditadura eram levados e violentamente torturados, com a conivência da burguesia e da boemia locais. Nos últimos anos, foi inaugurada uma placa em sua fachada e na calçada que marcava seu verdadeiro propósito, nomeando inclusive as vítimas que haviam sido torturadas ali. Há poucos meses, um casal de paranaenses escreveu na internet um relato curioso: foram passar alguns dias na cidade e alugaram pelo AirBnB um local para se hospedar. Ao chegarem ao destino, sentiram uma energia estranha na casa em que estavam hospedados, apesar de o local corresponder às belas fotos que eram propagandeadas no site de reservas. Decidiram procurar no Google se havia algo de curioso na história da casa e descobriram que estavam hospedados na Dopinha. Não há mais placa, não há mais referência ao passado, nenhum rastro da violência. Todo o esforço para registrar a Dopinha como arquivo da violência da ditadura foi apagado através de fotos bem iluminadas, um texto publicitário e um preço convidativo aos turistas. Entretanto, alguma sensação ruim ainda permanece, há algo que resiste tanto ao apagamento político como ao apagamento neoliberal.
O paralelo entre o caso e o conto é importante: enquanto que permanece algo de mal-estar, um resquício da maldição da ditadura, os rastros dos torturados foram eliminados. É como se houvesse uma disputa de rituais de invocação e banimento: enquanto que uma pichação serve como forma de invocar os fantasmas das vítimas para assombrar o local e jamais esquecermos do que ali se passou, as fotos publicitárias de propaganda no AirBnb servem para banir os fantasmas, deixar o passado para trás e tornar aquele local palatável, higienizado.
A casa de Adela parece ser um nexo espaço-temporal, uma não contemporaneidade do presente em relação a si mesmo. A persistência espectral da casa de Adela é o registro sempre retornante do acontecimento da ditadura. Expressa uma memória, faz os fantasmas dos desaparecidos retornar, mas também faz retornar a própria violência, afinal Adela também desaparece. Há uma violência que não se apaga, cujo trauma é sempre repetido não apenas do ponto de vista das vítimas, mas também das tecnologias dos torturadores. A ditadura e seus dispositivos de desaparecimento seguem existindo, não estão condenados ao passado: sua realidade está impressa na geografia de nosso continente, na estrutura própria das nossas cidades. Assim como há os fantasmas dos desaparecidos, há o fantasma de seus algozes.
Há um outro conto de Mariana Enriquez que discute essa persistência espectral da ditadura, chamado A hospedaria. Florencia e sua família vão para La Rioja todos os verões, uma cidade litorânea perto de Buenos Aires. Lá, ficam hospedadas na Hospedaria. Florencia é amiga de Rocío, uma garota local cujo pai trabalha como guia turístico contratado pela hospedaria, fazendo tours pelos sítios arqueológicos e pelas cavernas da região. Nesse verão em específico, Rocío está furiosa com Elena, a dona da hospedaria, que demitiu seu pai pelo fato de ele contar para alguns turistas a história do local, que era uma escola da polícia durante o período da ditadura. Rocío e Florencia decidem pregar uma peça em Elena como vingança, colocando bifes dentro dos colchões para que apodreçam e produzam um cheiro insuportável. Quando invadem a hospedaria durante a noite, começam a escutar sons de carros e buzinas, homens gritando e batendo com violência nas portas, vidros quebrando e gritos de desespero. Elas ficam apavoradas, e quando finalmente são descobertas, percebem que não havia ninguém lá.
Assim como em A casa de Adela, a assombração aqui expressa um tipo de persistência da violência. Enquanto alguns fantasmas retornam como vingança de um passado violentado, como uma figura de justiça e reparação, em A hospedaria a assombração é a própria violência. O inacabado aqui é a própria ditadura militar, que ainda se insinua no presente, muito depois de ter sida institucionalmente derrotada. A transgressão operada por Rocío e Florencia, é automaticamente rechaçada por um fantasma da opressão: pise fora da linha e voltaremos para lhe prender. É engraçado também o uso da carne apodrecida como a forma escolhida para a peça que as garotas irão pregar. É um tipo de espelhamento, em que o passado da hospedaria é enterrado ou higienizado (como no caso da Dopinha), e a carne apodrecida parece trazer de volta sua dimensão de local de assassinatos.
Há também uma importante conexão entre o público e o privado nesse conto. Nos é dito que o pai de Rocío, o guia turístico, é demitido pois insiste em lembrar do passado militar da hospedaria. Mas há também uma relação amorosa entre ele e Elena, a dona do local. Há uma disputa íntima entre aqueles que precisam lembrar não importa o custo, e aqueles que preferem “deixar o passado no passado”, sem contar com a persistência das assombrações que emergem violentamente contra a nossa vontade. Some-se a isso o fato de que há todo um contexto queer no relacionamento das duas garotas, que recoloca a forma da assombração da violência em outra dimensão. Não apenas as ditaduras regulam o político/público, mas também o privado. Qualquer desvio em relação a formação da família burguesa tradicional e suas dinâmicas de reprodução social deve ser violentamente policiado e oprimido. A descoberta da sexualidade queer nas adolescentes, algo que preferem manter soterrado e que emerge fora de seu controle, espelha um pouco a história enterrada da Argentina que também emerge assim que provocada. Como fala a irmã de Rocío para ela no fim do conto, todos sabem o que está acontecendo mas ninguém fala disso abertamente.
A fantasmagoria parece atravessar toda e qualquer separação entre registros: entre o passado e o presente, entre o vivo e o morto, entre o íntimo e o coletivo, entre privado e o público. O fantasma aparece como uma transversal, no sentido de Félix Guattari, que reúne diferentes registros sob a forma da assombração. Seja através da persistência das vítimas, que são constantemente chamadas a assombrar um presente tranquilizador e higienizado, seja pela persistência da violência, que não nos deixa esquecer que os processos de violência que marcaram a história – profunda e recente – da América Latina seguem agindo perante nossos olhos.
Há um detalhe no conto de Mariana, que pode passar despercebido, dada a magnitude da assombração da hospedaria. Diz respeito ao pai de Rocío, e sua atividade como guia turístico. Assim como no caso da Dopinha de Porto Alegre, ele faz visitas a sítios arqueológicos na região de La Rioja, que preservam rastros de populações que habitavam o local e não mais existem. É fácil deixar escapar o que de fato significa um sítio arqueológico, em especial aqui na América Latina. Assim como a hospedaria é um rastro de uma política de extermínio, que quer ser exorcizada de seu passado de violências, também o são esses sítios, que demarcam a presença de um processo de eliminação de populações. Todo sítio arqueológico é, em algum nível, um rastro do genocídio que formou essa terra. A América Latina parece ser assombrada, dando uma volta em um tropo racista do cinema de terror estadunidense, pois foi construída sobre um imenso cemitério indígena.
Que texto magnífico, seu significado vai além das palavras e transportou para esse tempo de genocídio e selvageria.
Me inspirou a criar uma história/ conto sobre Doi/COD aqui de SP usando esse tema em um outro contexto. Quando eu terminar vou linkar com sua News. Obrigado por compartilhar e fazer meu coração doer tanto.
Assisti ao filme, aliás só assisti, por causa desse texto. Achei que seria pesado demais, mas percebi que pegaram leve. O tempo inteiro, fazemos analogia com a situação que vivemos no Brasil, principalmente para as famílias que ainda não tem respostas às indagações sobre o paradeiro dos seus familiares. E dói pensar que muitos brasileiros em pleno século 21 continuam com o discurso de apologia à ditadura. Obrigada por compartilhar tanto conhecimento.
Beijo, menina